Trabalhando eu na área que trabalho, se há coisa que eu mais vejo é doença e o que ela pode fazer a um ser humano. A nossa população é maioritariamente envelhecida, da dita 3ª idade (e 4ª para alguns!) e, por isso, demências e AVCs são o pão nosso de cada dia, com todos os efeitos devastadores que cada um deles pode ter. Mas recentemente têm-nos chegado pedidos de ajuda de pessoas mais novas, a quem esse bicho chamado cancro colocou a vida em suspenso. E são cada vez mais e mais as pessoas a serem atingidas por este bicho, sendo que as que nos chegam são principalmente aquelas que, embora continuem a lutar, já sabem que essa é uma luta perdida.
Quando entro num novo domicílio e me deparo com alguém que está na luta vencida e, muitas vezes, numa fase terminal da doença e numa fase ainda precoce da vida, há qualquer coisa, qualquer campainha, cá dentro que apita e que me relembra que nós, seres humanos, não somos efectivamente nada quando a doença chega para ficar e nos levar. E este inimigo, este bicho, é demasiado silencioso para se anunciar e capaz de mudar vidas de um dia para o outro, enquanto as consome e acaba com sonhos, planos, projectos, ou pequenas coisas tão simples da vida como ter forças para nos levantarmos da cama para ir à janela ou, ainda mais básico, levantarmo-nos da cama para irmos à casa-de-banho.
Há doenças que nos roubam tudo antes de nos roubarem a vida, mas que não nos roubam a consciência do nosso estado e a certeza de que esta batalha não vamos vencer e que, se é para perder, que seja o mais rapidamente possível. Lidar com o sofrimento humano, no seu estado mais puro, é das experiências mais dolorosas que podemos ter. Mas é também das mais ricas, já que, mais uma vez, colocamos tudo em perspectiva, sem conseguirmos deixar de pensar no inevitável "pode-me acontecer a mim ou aos meus...".
Sendo importante esses exemplos de gente mais ou menos conhecida que lutou contra o cancro e o venceu ou não, para mim é ainda mais importante esta realidade nua e crua, o entrar naquelas casas, naqueles quartos, naquelas vidas, onde já só cheira a morte anunciada. Ouvir um "já não há nada a fazer, só esperar" é mais forte que qualquer livro de 500 páginas cheio de esperança e positivismo. E, quase sempre passado pouco tempo (e ainda bem que este tempo é sempre curto), "fulano morreu" é a certeza definitiva que não somos nada, que a saúde é o nosso bem mais precioso e que isto de viver, às vezes, é muito, muito doloroso.