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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

Assustadoramente enriquecedor

 

   Ia reticênte, confesso. Um pouco nervosa até. Assustada também fazia parte do meu estado de espírito. Era uma realidade completamente nova. Uma área em que não tinha qualquer experiência, com a qual nunca tinha tido contacto e que nunca havia despertado muito o meu interesse.

   Cheguei e encontrei a equipa de rua à minha espera. E ainda me assustei mais. Eramos 3 psicólogas e uma educadora social. Todas demasiado jovens para aquele tipo de trabalho, a meu ver. A carrinha foi carregada. Refeições, água, seringas, preservativos, filtros, pratas, caricas, desinfectantes e afins. Cheirava a hospital.

   Entrámos num dos bairros mais problemáticos do Porto. Não se via nenhuma alma sequer. A polícia "invadiu" aquela zona e o tráfico e consumo foi obrigado a fugir para outros locais. Poucos quilómetros mais à frente, outro bairro. As primeiras pessoas. Queriam apenas algo que comer. Há que partir para outro bairro, onde ficaremos todo o resto da manhã. A carrinha parou e a multidão chegou. E eu praticamente em estado de choque. Uma das colegas convida-me a conhecer o local onde consomem. Uma fábrica abandonada. Julgo que cheguei a tremer. Olhava para todos os lados e ela com a naturalidade de quem faz aquilo todos o dias, saudando todos os que se cruzavam connosco e recebendo saudações em troca. Pela primeira vez, vi alguém consumir "ao vivo e a cores". Todo o tipo de drogas, de todas as formas. Depois do choque inicial, a reacção e a acção. Comecei a interagir com todos os que se aproximavam da carrinha. Era a minha primeira vez com eles e a primeira vez deles comigo. Cautela. Aproximação lenta e gradual. Em menos de 15 minutos já andava de um lado para o outro, ora dando um pão com tulicreme, ora trocando seringas. A dada altura abstraimo-nos daquela realidade e passamos a "viver" para fazer um trabalho bem feito e ajudar aquelas pessoas de aparência do pior que possam imaginar, mas com um respeito imenso e, a grande maioria, com extrema gratidão pelo nosso trabalho.

   Todo o mundo das drogas é desconhecido para mim. Preciso quase de um dicionário. "Dra, arranja-me 10 máquinas, por favor?". E eu de olhos esbugalhados: "Máquinas?". E eis que ouço: "São seringas". Apenas um exemplo. Devo dizer que os meus ouvidos captaram muitas expressões e palavras que continuo sem saber o que significam. Com o tempo lá chegarei. Assim como chegarei a ter várias conversas como a que tive hoje com um dos consumidores e traficantes que esteve preso e me contou toda a sua "aventura" na cadeia, a forma como continuou a traficar lá dentro, a forma como a droga lhe chegava às mãos e a forma como se viciou assim que saiu em liberdade. Conversas como a daquela mãe que já pela enésima vez veio de Paredes ao Porto buscar o filho toxicodependente para o levar para tratamento mais uma vez porque "assim não o posso ter em casa. Não aguento. A droga é muito cara. É a última vez que tento". Conversas que giram em torno de drogas, formas de consumo, traficantes pequenos e grandes, mediadores, chefes, bófia e afins. É um outro mundo ali. Uma realidade que choca pelo estado daquelas pessoas, pelo sofrimento de uma ressaca, pela idade demasiado jovem da maioria deles, pelas história de vida, pela ausência de esperanças. Choca pela naturalidade e necessidade com que consomem desesperadamente, virando-nos as costas quando o fazem, "por respeito", dizem eles. E no fim, o que me chocou mais foi a aceitação positiva e calorosa com que veêm a nossa chegada. Estão à nossa espera. À espera do pãozinho e do café e do chocolate e da água. Estão à espera dos kits para poderem ir consumir em segurança. Estão à espera do desinfectante para se sentirem mais seguros. E estão à espera de uma palavra amiga, de uma palavra de incentivo, que ajuda sem condenar, que diz a verdade sem ferir. De alguém que não aponta o dedo mas estende a mão. É por isso que dizem: "Eu vou ali Dra (entenda-se vou ali consumir) mas já venho para falarmos um bocadinho". E vêm.  

   Foram apenas 5 horas de trabalho, mas já serviram para me "conquistar". A toxicodependência sempre me fez alguma confusão. A forma como se inicia e se fica preso. Os motivos, as justificações (se é que elas existem) e a falta de força para sair desse mundo, a desmotivação, a descrença e o arrastar cada vez mais fundo para aquele mundo. Esta experiência permitir-me-á conhecer o humano por trás da substância. E é isso que me interessa: a pessoa e a sua história. E porque não, uma esperança de mudança? Até lá, ficará com toda a certeza, uma experiência assutadoramente enriquecedora.

 

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