O meu primeiro dia enquanto psicóloga numa equipa de apoio domiciliário mostrou-me uma realidade que nos chega apenas pela televisão ou pelos jornais. A realidade dura e crua de um grande número de idosos do nosso país, que vivem em condições desumanas que muitas vezes desafiam o próprio conceito de viver.
Andei por essa casas demasiado antigas, demasiado pequenas, demasiado degradas que preenchem as ruas também demasiado antigas, demasiado pequenas e demasiado degradas da zona histórica do Porto. Quando se atravessam aquelas portas velhas e de madeira as imagens são bem diferentes daquelas que as máquinas fotográficas dos turistas registam cá fora. Entre 4 paredes, há uma imensidão de escadas para subir e descobrir casas que se assemelham a cubículos onde precisamos de estar na posição certa para termos espaço para abrir a porta. Assim que entramos somos invadidos por aquele cheiro que nos incomoda sempre. Não é o cheiro a velho. É o cheiro a miséria, a doença, a abandono (e outros afins supostamente intímos). E depois vemos as pessoas. Os idosos. Vemos o Sr. V. que passa o dia entre a cama e a cadeira, com a televisão como companheira e que só se desloca quando a equipa de apoio lá vai, dada sua incapacidade, que tem o corpo coberto de feridas e o lado esquerdo paralisado, mas que até sabe que já não falta muito para o mês de Agosto acabar e que hoje é quarta-feira e amanhã é quinta e que já não falta muito para as eleições, que devem ser lá para Outubro.
Vemos a dona P. e a dedicação extrema do seu único filho, que paga "50 contos, falando em contos Dra, está a ver, 50 contos" de aluguer de uma casa que é tudo menos casa e que dorme há 2 anos no sofá nada confortável da sala que é sala e quarto e arrumos de tudo e mais alguma coisa, enquanto a mãe e os seus 96 anos prepara o leitinho com nesquick e açucar e o aquece num fogão de campismo até ele "subir mesmo, mesmo até à beirinha da borda", e depois "se faz o favor tira a casca do leite, tira e mostra", porque a nata incomóda e ela já viveu demais para se continuar a incomodar.
Vemos as duas irmãs que vivem isoladas num último andar degradado, numa casa grande mas sem utilidade, tendo por companhia uma cadela com demasiado pelo e mimo e as exigências da irmã que ainda se movimenta em jeito de arrasto enquanto supervisiona todo o trabalho das auxiliares que tratam da sua irmã que de humano conserva apenas os olhos abertos.
Vemos aquele senhora cujo quarto é na cozinha e que satisfaz as suas necessidades na cozinha, em frente a uma janela, virada para a rua (confesso que este foi o cheiro que mais tive dificuldade em suportar).
Vemos a dona C. que hoje só quer que lhe façam a trança, porque com 92 anos ainda tem muito para fazer lá em casa. Casa que tem graças à sua "patroa, que é muito boa e até tem um filho famoso e bom actor nas telenovelas da TVI". E por isso, tem de fazer tudo "antes da hora da novela para o poder ver, mas ele agora não aparece porque vai começar uma nova", isto quando a novela não dá na hora de ir dormir, que é às 21h.
E vemos o Sr. Dr. e a sua esposa de olhar cansado, carregado e preocupado, que só pede a Deus que conserve o marido até às Bodas de Ouro, que estão aí a chegar. E o marido prostrado, totalmente dependente, aborrecido por o tirarem da cama e cheio de tentativas falhadas de se levantar da cadeira de rodas.
E depois fechamos as portas de cada uma destas casas e percebemos que, de alguma forma, a nossa vida mudou. Pensamos em todos aqueles clichés; que somos uns sortudos, que temos a melhor vida do mundo, que somos abençoados. E os clichés começama fazer sentido, porque realmente temos muita sorte por não viver naquelas condições. Mas também temos muita sorte por podermos conhecer aquela realidade, aqueles outros mundos tão diferentes dos nossos. São mundos que nos transformam e nos enriquecem. Que nos abrem os olhos. Que nos acordam para a vida. E que nos dão uma força e uma resistência estrondosas.
Não posso deixar de louvar mesmo o trabalho das auxiliares responsáveis pela higiene e pelos cuidados aqueles idosos. Um trabalho duríssimo, fisica e psicologicamente. E um trabalho que lhes exige um estômago do tamanho do mundo! É preciso coragem e gosto pelo que fazem, só assim aguentam tudo aquilo.