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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

O dia em que te arrumei cá dentro

"Podemos demorar muitos anos até conseguir passar por cima das coisas sem mágoa. Primeiro vem o esforço, depois o falso esquecimento. Seguem-se o rancor, a revolta, a sensação de impotência. (...) Há mesmo um dia, em que chega a libertação, dia D do coração. Nunca é quando queremos, apenas e só quando estamos preparados. E para nos prepararmos é preciso querer. Quantas e quantas vezes as pessoas usam o verbo conseguir de forma errada! (...) Querer e conseguir não são o mesmo; só consegues quando queres, o contrário não é possível."

Margarida Rebelo Pinto, "O dia em que te esqueci"

 

   A vida é feita de chegadas e partidas, de descobertas e desilusões. E de libertações. Quantas vezes não perdemos já aquilo que possuíamos, ou julgavamos possuir? Quantas vezes não vimos já partir, deixar a nossa vida sempre demasiado de repente, aqueles que a coloriam? As pessoas que deixámos entrar na nossa vida trazem-nos momentos...e levam-os quando partem. Levam os momentos e levam-nos sempre uma parte de nós, cujo tamanho e importância varia com o significado dessa pessoa para nós. Deixam-nos as recordações, muitas vezes dolorosas e, aparentemente, impossíveis de suportar na ausência.  Digo "aparentemente", porque já diz o cliché "Nada é impossível". Nem mesmo viver com a ausência. Chamam-lhe esquecer. Eu gosto de lhe chamar "arrumar". Esquecer é uma palavra muito forte e um acto ainda mais forte. Esquecer é negar, desprezar, humilhar, apagar para sempre. E esquecer seres humanos é desumano. Como podemos esquecer alguém (ou até algo) que nos oxigenou os dias em algum momento, que fez parte da nossa vida, esteve lá connosco...positivo ou negativo nada é para ser esquecido. Nada pode ser alguma vez (verdadeiramente) esquecido. Quanto muito podemos negá-lo, recalcá-lo, e é o pior que podemos fazer, porque nos ilude e a ilusão é a mais fatal das armas. O esquecimento é sinal de um quadro patológico. Emocional, confusacional, demencial, psicótico...Em vez de esquecer, há que arrumar, há que "passar por cima", não quando queremos ou nos convém, mas quando estamos preparados, quando estamos interiormente prontos para isso. E isso é quando? Quando o sentirmos. Quando formos capazes de recordar o bom e o mau com um sorriso, porque os dois nos fizeram crescer e nos tornaram mais fortes. Quando a mágoa e o rancor forem substituídos pela lembrança pacífica de uma fase que passou. Arrumar também é relembrar. É ser capaz de falar livremente sobre o passado. Sem querer esquecer nada. Nem ninguém. O dia "em que te arrumei" não é o dia "em que te esqueci". Pelo contrário, é o dia "em que te lembrei e sorri".

   Acredito que cá dentro temos muitas caixinhas, todas elas prontas para arrumarem as nossas recordações e a nossa vida. É em cada uma delas que arrumamos as amizades que perdemos, as paixões que acabaram antes do amor, os amores que não foram suficientemente corajosos, as relações que se desfizeram sem aviso. São elas que albergam pessoas, momentos, sentimentos, emoções e os transformam em recordações. Tudo muito bem arrumadinho, para permitir que a vida flua com o seu habitual ritmo alucinante mas fascinante.  Essas caixinhas fazem-nos sentir leves, livres e humanos. De novo, humanos.

   Nem sempre as arrumações são fáceis. Podem demorar dias, meses ou anos. Há que sofrer, gritar, questionar. E há que compreender, interiorizar e aceitar. Então aí estamos prontos para arrumar. Fazer o luto, seja do que for, não é mais do que isso: querer arrumar depois questionar e encontrar as respostas. E todos nós possuimos as ferramentas necessárias para o fazer. Todos. Não quando queremos, mas quando estamos prontos. Todos.