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No mesmo dia, em menos de uma hora, o tudo e o nada. E a revolta.
Realidade número 1:
Sra. E., 76 anos, sofreu AVC, não anda, não fala. Vive sozinha. Perdão. Vive com 3 prestadoras de cuidados e o Max, o cão fiel, e conta ainda com o nosso serviço de apoio domiciliário para higiene pessoal e um fisioterapeuta que até ao fim-de-semana trabalha, numa moradia de 2 andares, com uma área absurda para alguém nas suas condições (sendo que a casa foi adquirida pela filha já depois de a sra se encontrar nestas condições), com elevador, cadeiras elevatórias, rampas, e, preparem-se, um jardim fantástico de fazer inveja a qualquer um com uma piscina coberta ao fundo, para a sra. poder fazer alguma fisioterapia.
Realidade número 2, ou se preferirem, o mundo real:
Sra. C., 77 anos, deu uma queda e nunca mais andou. Está acamada, algaliada, não anda, mas fala e está completamente consciente de tudo o que rodeia. Vive sozinha. Perdão. Está completamente sozinha, porque as baratas que por lá passeiam não contam. À Sra. C. fazemos-lhe a higiene pessoal, limpamos a casa, lavamos a roupa, desinfestamos as baratas, levamos o pequeno-almoço, o almoço, o lanche. Deixamos-lhe o jantar às 16h30, a sopa (que comerá fria), num tabuleiro, na cama, juntamente com água e fruta e bolachas e gelatina e um iogurte, que ela come deitada, na posição em que estará desde as 16h30 desse dia às 8h30 do dia seguinte. A Sra. C. não tem ninguém a partir das 16h30, porque os nossos serviços terminam a essa hora. A televisão fica ligada 24 horas por dia porque não tem comando, a persiana nunca é totalmente aberta ou fechada porque é um crime fazer a noite chegar às 16h30, luz só a do tecto e que difícil seria dormir de luz de tecto acesa. A Sra. C. está completamente sozinha sempre que nós não estamos lá. E a Sra. C. está sozinha porque não sabe do filho. Porque mais nenhum familiar quer saber dela. E porque a Segurança Social cortou-lhe o pagamento de um prestador de cuidados.
Neste momento a Sra. C. está sozinha naquele quarto, provavelmente cheia de fome pois não acredito que consiga dosear a forma como come o que lhe é deixado. Com toda a certeza estará a perguntar-se o que anda a fazer por cá e o que é isso a que chamam viver, porque, com certeza, viver não é aquilo que ele anda por cá a fazer neste momento.
Pois que lá estava eu, na fila daquele hipermercado do elefante porque há que aproveitar as promoções que por lá se fazem, em sofrimento desumano ao fim de mais de 12 horas nuns saltos quando a minha companheira de fila "traseira" profere as palavras que eu tão bem percebi: "ai, já não aguento os pés". E eu olho com aquele ar solidário de mulher vaidosa para a minha companheira de fila "traseira". Eis que a coisa se dá: com a maior das naturalidades, descalça as botas, coloca-as no carrinho, puxa as meias para cima et voilá, aguarda o resto do tempo na fila descalça!
Eh pá, há mesmo pessoas fantásticas. O que eu gostava de ser assim resolvida e prática.
Acabei de receber um email das chefias a informar que o meu horário de descanso, vulgo hora de almoço, passa de 1h para 1h30m. Maravilha! E agora o senão: essa meia horita não é assim uma oferta pelos nossos belos serviços; toca a colocar esses 30 minutos no horário de saída e voilá, já saimos meia hora mais tarde!
Não é coisa para me incomodar, até porque praticamente todos os dias saio meia hora depois do meu horário e quando ando aqui por perto sempre posso vir almoçar a casa e não comer sempre comida aquecida. Mas uma coisa é "sair fora do meu horário" outra é ter de lá ficar essa meia hora, que, em alguns dias e em alguns locais, se limita a ficar fechada em gabinete a preencher papéis e relatórios, já que os utentes já estão todos em casa e a maioria do pessoal já saiu (sim, somos quase funcionários públicos). Assim como assim, sempre terei de deixar de dizer "nunca saio a horas" e já não tenho desculpa para passar tantas horas agarrada ao pc em casa a fazer o que devia ter sido feito em horário de trabalho.
Num dos nossos centros sociais temos uma utente de 100 anos com quem conversei apenas uma vez, há mais de 3 meses atrás, por ocasião de uma substituição de um colega. Poderia falar aqui do estado excelente da senhora, do seu invejável nível cultural e das conversas interessantes que podemos ter com ela. Hoje só vos quero contar que não só ela se lembrou de mim, da minha idade e de que tinha o cabelo mais comprido e estava vestida de azul (isso não sei!), como se recorda que me esteve a falar durante muito tempo sobre o verdadeiro Palácio de Cristal.
Hoje disse-me:
"Depois venha um bocadinho ao pé de mim que tenho uma surpresa para si."
E não é que a senhora andou a chatear o neto para lhe arranjar fotografias do Palácio de Cristal, lá dos anos 20, "naquele aparelho que ele tem, que tem uma espécie de televisão e ele faz assim com os dedos numas coisas que parecem umas letras e aparece lá tudo", e trouxe três para me oferecer?
Tenho ou não tenho os velhinhos mais fofinhos do mundo?