Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
Foto tirada em Mesão Frio, 24 Nov.2013Para quê alcançar os astros?! Para quê?! Para os desfolhar, por exemplo, como grandes flores de luz! Vê-los, vê-os toda a gente. De que serve então ser poeta se se é igual à outra gente toda, ao rebanho?... Eu não peço à Vida nada que ela me não tivesse prometido, e detesto-a e desdenho-a porque não soube cumprir nem uma das suas promessas em que, ingenuamente, acreditei, porque me mentiu, porque me traiu sempre. Mas não choro, não, como os portugueses chorões, não tenho nada de Jeremias, pareço-me antes com Job, revoltado, gritando imprecações no seu monte de estrume. Não gosto de lágrimas, de fados nem de guitarras, gosto das belas coisas claras e simples, das grandes ternuras perfeitas, das doces compreensões silenciosas, gosto de tudo, enfim, onde encontro um pouco de Beleza e de Verdade, de tudo menos do bípede humano, em geral, é claro, porque há ainda no mundo, graças a Deus, almas-astros onde eu gosto de me reflectir, almas de sinceridade e de pureza sobre as quais adoro debruçar a minha.
Florbela Espanca, in "Correspondência (1930)"
"Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de inseto."
É deste modo que Kafka inicia a história de Gregor Samsa, um sujeito que se viu "obrigado a se tornar um caixeiro-viajante ,que deixou de ter vida própria para suportar financeiramente todas as despesas de casa.
Numa manhã, ao acordar para o trabalho, Gregor vê que se transformou num inseto horrível com um "dorso duro e inúmeras patas". A princípio, as suas preocupações passam por pensamentos práticos relacionados com a sua metamorfose.
Depois, as preocupações passam para um estado mais psicológico e até mesmo sentimental. Gregor sente-se magoado pela repulsa dos pais perante a sua metamorfose. Apenas a irmã se digna a levar-lhe a alimentação, mas mesmo assim a repulsa e o medo também começam a se manifestar. A metamorfose de Gregor vai além da modificação física. É sobretudo uma alteração de comportamentos, atitudes, sentimentos e opiniões.
Gregor passa a analisar as coisas que o rodeiam com muito mais atenção. Outra metamorfose ocorre no seio familiar: o pai volta a trabalhar, a irmã (Grete) também arranja um emprego e passam a alugar quartos na própria casa onde habitam. As atitudes dos pais perante o filho retratam ao leitor a ideia que este era apenas o "sustento" da casa. A metamorfose de Kafka não conta apenas a história de um homem que se transformou num inseto. É sobretudo uma história de alerta à sociedade e aos comportamentos humanos. Nesta história, Kafka presenteia-nos com a sua escrita sui generis, retratando o desespero do homem perante o absurdo do mundo.
Interessante perceber que em nenhum momento da obra Gregor se dá conta realmente que se transformou num inseto. Apenas observa seus novos membros, órgãos e hábitos, mas com o tempo se acomoda na nova condição sem realmente entender no que se tornara.
Roubei este texto da wikipedia (nota-se) porque me pareceu adequar-se bem àquilo que este livro representa. Sem mais nada a acrescentar, para além da certeza de querer conhecer mais da obra deste escritor.
Que bem me soube ir a casa da Sra. R. e encontrar por lá o Natal! Soube tão bem! Especialmente porque a Sra. R., do alto dos seus quase 90 anos, vive completamente sozinha (uma sobrinha a viver em Lisboa é a sua única família), mas mesmo assim diz que não consegue passar a época natalícia sem encher, literalmente, a sua casa de grinaldas, bolinhas e luzes a piscar. E apesar de o pinheiro estar praticamente a dobrar de tanto enfeito que ela lhe pôs e de a sua pequena sala parecer um arco-irís de tanta fita e luzinhas, ela repete e repete "isto ainda não está como eu quero"...
No meio de tanta tristeza e, sobretudo, no meio de uma completa solidão, este entusiasmo com uma época festiva cai tão, mas tão bem. Quase tão bem como o comentário da Sra. R., voltada para um dos seus conjuntos de luzinhas: "Ai, isto não está como eu gosto. Espere aí...já sei! É que para isto ficar ligado como eu gosto tenho de carregar 7 vezes neste botão. Viu se eu carreguei 7 vezes? De certeza que não...deixe ver. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7...ah! Agora sim! Vê?". Não vi qualquer alteração, mas vi um grande sorriso pintado com luzinhas de Natal e isso preenche-nos o dia!
Conheci hoje a primeira mulher cujo marido está preso por violência doméstica. Não sei descrever de forma fiel a confusão de sentimentos que vai cá dentro por lidar directamente, mais uma vez, com uma realidade humana vergonhosa e causadora de um sofrimento indescritível. A vítima em causa, que hoje tem 64 anos e não está já capaz de perceber a gravidade da sua história de vida (provavelmente devido a essa mesma história e tudo o que dela resultou, incluindo internamentos, medicação e comportamentos de risco que tentavam sobretudo ser uma escapatória) conheceu um homem que não lhe deu outra vida que não a da pancada e que só foi preso quando atirou com a esposa para o hospital, no qual esteve internada e a fazer fisioterapia de recuperação durante meses.
Nós sabemos que estas coisas acontecem, mas quando elas nos aparecem à frente não há forma de ficarmos indiferentes e encararmos isto como "mais um caso". E apesar de esta vítima estar hoje num estado mental e cognitivo que se calhar torna todo este fardo um pouquinho mais leve, a sua história e a sua dor, que os olhos já não transparecem mas que as palavras denunciam, vêm connosco para casa. E pesam. Porque magoam. Porque a maldade do ser humano magoa sempre. Sempre.