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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

Histórias com gente dentro

   Quando nos ligam com um pedido de apoio domiciliário nunca sabemos muito bem o que vamos encontrar quando fazemos a primeira visita domiciliária. Eu vou sem expectativas nenhumas e pronta para qualquer cenário. Mas mesmo assim, a vida consegue ser cruel e dar-nos verdadeiras estaladas na cara. Ontem foi um desses dias. 

   Fiz a primeira visita à Sra. T., que me ligou na sexta-feira a pedir apoio domiciliário para higiene pessoal e almoço devido a problemas de saúde. Raramente pergunto a idade neste primeiro contacto telefónico e por isso esse foi o primeiro de muitos estalos que recebi. A Sra. T. tem 47 anos. Até 2008/2009 vivia uma vida estável, com emprego, marido, casa própria e uma filhota a caminho. Até que ficou desempregada. A filha nasceu. O marido ficou desempregado. No desespero financeiro fez de tudo um pouco para ganhar algum dinheiro. Um dia, há cerca de 3 anos, deu uma queda numas escadas. O pé direito falhou-lhe, perdeu a força e caiu. Fracturou um ombro mas nada que não se curasse. Passado um tempo, voltou a cair. Mais uma perda de força no pé. E os sintomas começaram a aparecer. Alguma coisa não estava bem. O diagnóstico foi dos mais cruéis que um ser humano jovem, com uma filha para criar e toda uma vida para viver pode receber: esclerose lateral amiotrófica (ELA). Em 2 anos, a Sra. T. perdeu todos os empregos, perdeu a casa, perdeu a vida, os sonhos e a esperança. O mundo desabou em cima dela. Em menos de 2 anos perdeu toda a mobilidade dos membros inferiores, os superiores começam a ressentir-se e a fala já não é perfeita. Hoje vive com a mãe, com diversos problemas de saúde, numa casa camarária. Passa os seus dias numa cadeira de rodas e são o marido e a filha de 7 anos, que é capaz de nos relatar todo o historial clínico da mãe, que a auxiliam em todas as actividades de vida diária.

   Aos 47 anos, T. está dependente de terceiros para tudo. Aos 47 anos, T. trava uma batalha infernal que sabe que não vencerá. Aos 47 anos, T. já não tem vida e não pode sonhar ou sequer acreditar no amanhã, porque T. sabe, aos 47 anos, que amanhã só pode ser pior que hoje, que o futuro que existe será tão dolorosa que, com toda a certeza, preferiria não o viver. Ou sobreviver. Aos 47 anos, T. percebe melhor que ninguém que esta vida é uma passagem e que para algumas pessoas, é uma passagem demasiado curta, demasiado dolorosa, demasiado vazia de vida.