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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

O tempo que não passa

Os dias esticam e ficam mais longos, o relógio diz que não, mas, com licença, o que sabem os relógios sobre a alma humana? Não sabem nada. Alá me perdoe. O tempo demora mais a passar, muito mais, é assim que se sofre. Quando se está feliz, esse mesmo tempo passa a correr, parece que vai atrasado para uma festa, mas, se vê uma lágrima, pára e fica a ver o acidente, dá voltas à nossa desgraça e não anda para a frente como os relógios dizem que ele faz. O nosso bairro é enorme, primo, e a rua é impossível de atravessar, de tão pequeno que tudo se tornou. Estou sozinho. 

"Para onde vão os guarda-chuvas", Afonso Cruz

«Para onde vão os guarda-chuvas», Afonso Cruz

O pano de fundo deste romance é um Oriente efabulado, baseado no que pensamos que foi o seu passado e acreditamos ser o seu presente, com tudo o que esse Oriente tem de mágico, de diferente e de perverso. Conta a história de um homem que ambiciona ser invisível, de uma criança que gostaria de voar como um avião, de uma mulher que quer casar com um homem de olhos azuis, de um poeta profundamente mudo, de um general russo que é uma espécie de galo de luta, de uma mulher cujos cabelos fogem de uma gaiola, de um indiano apaixonado e de um rapaz que tem o universo inteiro dentro da boca. Um magnífico romance que abre com uma história ilustrada para crianças que já não acreditam no Pai Natal e se desdobra numa sublime tapeçaria de vidas, tecida com os fios e as cores das coisas que encontramos, perdemos e esperamos reencontrar.   Excerto:«– A minha mãe, Sr. Elahi, interrogava-se para onde vão os guarda-chuvas. Sempre que ela saía à rua, perdia um. E durante toda a sua vida nunca encontrou nenhum. Para onde iriam os guarda-chuvas? Eu ouvia-a interrogar-se tantas vezes, que aquele mistério, tão insondável, teria de ser explicado. Quando era jovem pensei que haveria um país, talvez um monte sagrado, para onde iam os guarda-chuvas todos. E os pares perdidos de meias e de luvas. E a nossa infância e os nossos antepassados. E também os brinquedos de lata com que brincávamos. E os nossos amigos que desapareceram debaixo das bombas. Haveriam de estar todos num país distante, cheio de objectos perdidos. Então, nessa altura da minha vida, era ainda um adolescente, decidi ser padre. Precisava de saber para onde vão os guarda-chuvas.– E já sabe? – perguntou Fazal Elahi.– Não faço a mais pequena ideia, mas tenho fé de encontrar um dia a minha mãe, cheia de guarda-chuvas à sua volta.»
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   Afonso Cruz é um autor que descobri recentemente e que me tem agradado bastante. Este "Para onde vão os guarda-chuvas" é um livro muito simpático, claramente fabulado e com um toquezinho de magia, que nos transporta desde a primeira página para uma espécie de mundo das mil e uma noites, com cheiros a especiarias e personagens carregadas de sentimentos, mas às quais consegui sempre identificar um toquezinho de humor. Por mais rídiculo que possa parecer, o final é arrebatador e a questão é só uma: até onde somos capazes de ir na busca por amor e afecto?
   Totalmente recomendável!

«Jesus Cristo bebia Cerveja», Afonso Cruz

Uma pequena aldeia alentejana transforma-se em Jerusalém graças ao amor de uma rapariga pela sua avó, cujo maior desejo é visitar a Terra Santa. Um professor paralelo a si mesmo, uma inglesa que dorme dentro de uma baleia, uma rapariga que lê westerns e crê que a sua mãe foi substituída pela própria Virgem Maria, são algumas das personagens que compõem uma história comovente e irónica sobre a capacidade de transformação do ser humano e sobre as coisas fundamentais da vida: o amor, o sacrifício, e a cerveja.
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   Não conhecia Afonso Cruz e confesso que foi o título deste livro que me chamou a atenção numa visita à Fnac. Fiquei curiosa pelo livro e por conhecer o escritor, mas fui adiando e adiando a compra...até à semana passada! E a verdade é que o devorei em precisamente uma semana, o que quer dizer alguma coisa relativamente ao que achei deste livro, que é adorável! Reconhece-se aqui um cheirinho de Saramago e Valter Hugo Mãe, o que é logo receita para o sucesso e depois desta primeira viagem, fiquei ainda mais curiosa em conhecer outras obras deste autor, principalmente o também muito falado "Para onde vão os guarda-chuvas". 
   Parece-me que descobri mais um grande escritor nacional!

A apagar a velhice

Os bombeiros deveriam andar a combater o fogo, o elemento de Heráclito. Em vez disso, lutam contra o tempo. Uma luta quimérica. Para combatero fogo usam o seu grande inimigo, a água, mas para combater o tempo só têm uma maca, um medidor de tensão e uma garrafa de oxigénio. E, claro, os velhos continuam a morrer. Os bombeiros deveriam ter mangueiras a deitar juventude, deveriam andar a apagar a velhice.

"Jesus Cristo bebia cerveja", Afonso Cruz

A História

Quando acordaram de manhã, na mesma cama, ela disse-lhe que queria ter um passado com ele. Não era um futuro, que é uma coisa incerta, mas um passado, que é isso que têm dois velhos depois de passarem uma vida juntos. Quando disse que queria ter um passado com alguém, queria dizer tudo. Não desejava uma incerteza, mas a História, a verdade.

 

"Jesus Cristo bebia cerveja", Afonso Cruz