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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

"Só somos felizes quando já não sentimos os sapatos nos pés

"Eu, quando olho para as coisas quero que elas me sejam familiares, como o meu tio e o meu marido, como o pão que se come às refeições. Quero deitar-me sempre com o mesmo homem, com os mesmos lábios. Quero que os lençóis de hoje me pareçam os lençóis de ontem, mesmo que os bordados sejam completamente diferentes. Não quero que os beijos que recebo sejam novos, quero que sejam velhos, quero que sejam os de sempre. Não me quero sobressaltar como quando era jovem. Uma pessoa só pode ter paz quando está ao pé das mesmas coisas, quando nem repara nelas, porque elas já fazem parte de si, como se as tivesse comido e mastigado e engolido e agora fossem carne da sua carne e sangue do seu sangue. Só somos felizes quando já não sentimos os sapatos nos pés." Afonso Cruz, O Pintor debaixo do Lava-loiças

Que esta semana vos traga muitos momentos em que não sentem os sapatos nos pés.

Ler: O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, Afonso Cruz

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A liberdade, muitas vezes, acaba por sobreviver graças a espaços tão apertados quanto o lava-loiças de um fotógrafo. Esta é a história, baseada num episódio real (passado com os avós do autor), de um pintor eslovaco que nasceu no final do século XIX, no império Austro- Húngaro, que emigrou para os EUA e voltou a Bratislava e que, por causa do nazismo, teve de fugir para debaixo de um lava-loiças.

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   Que Afonso Cruz é um dos melhores escritores nacionais já todos os apreciadores de literatura o sabem. O que eu não sei se todos sabem é a preciosidade que é este livro!

   Não há propriamente uma "história normal", mas há uma personagem adorável, suficientemente melancólica para nos fascinar desde a primeira página, porque é exatamente aí que percebemos que este livro vai transbordar todas as nossas medidas e expectativas. É tão bom, tão cheio de coisas boas, tão cheio de vida sofrida mas vivida, tão repleto de reflexões deliciosas e tão regado com aquele cheirinho de "hum, Saramago podia ter escrito isto" que, além de ser recomendado pelo Plano Nacional de Leitura deveria ser recomendado e obrigatório na vida literária de todos nós!

   Por favor, devorem-no!

Escorrega

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"O escorrega ensina-nos que um pequeno, muito pequeno, momento de prazer exige que subamos escadas. O esforço para ser feliz é muito maior que aquilo que desfrutamos. É isso que nos diz o escorrega. Não é por acaso que todos nós somos educados com eles." #afonsocruz

O futuro não existe

o futuro não existe, como todos sabemos. O futuro será sempre uma coisa a provar. A única coisa que todos nós vemos é o presente. O futuro, bem como o passado, não passam de memórias e previsões. Coisas que não têm existência senão dentro de nós. Porém, até os maiores céticos creem no futuro. Como se sele existisse realmente, como se existisse fora de nós. É uma crença coletiva, apesar de apenas vermos o presente. Mas intuimos, o que abre o espectro da nossa percepção. Se podemos crer em algo que nunca vimos, será que não podemos acreditar em várias outras coisas que nunca vimos?

Um cético dirá que é muito simples: o dia de amanhã acontecerá porque tem acontecido desde sempre. Mas é o erro, o famoso erro, do indutivismo.

(...)

Não está provado que o dia de amnhã seja sempre o seguimento do dia de hoje. Tem acontecido, mas nada nos garante que não deixe de acontecer.

Afonso Cruz, O Pintor Debaixo do Lava - Loiças

«Flores», Afonso Cruz

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Um homem sofre desmesuradamente com as notícias que lê nos jornais, com todas as tragédias humanas a que assiste. Um dia depara-se com o facto de não se lembrar do seu primeiro beijo, dos jogos de bola nas ruas da aldeia ou de ver uma mulher nua. Outro homem, seu vizinho, passa bem com as desgraças do mundo, mas perde a cabeça quando vê um chapéu pousado no lugar errado. Contudo, talvez por se lembrar bem da magia do primeiro beijo - e constatar o quanto a sua vida se afastou dela - decide ajudar o vizinho a recuperar todas as memórias perdidas. Uma história inquietante sobre a memória e o que resta de nós quando a perdemos.
Um romance comovente sobre o amor e o que este precisa de ser para merecer esse nome.
«Viver não tem nada a ver com isso que as pessoas fazem todos os dias, viver é precisamente o oposto, é aquilo que não fazemos todos os dias.»

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   Afonso Cruz é um dos melhores escritores da nossa actualidade literária. E se dúvidas faltassem, este seu último livro veio demonstrá-lo mais uma vez. Se há gente que nasceu para escrever diferente e bem, Afonso Cruz é um deles. Mais um livro carregado de sentimentos pesados mas reais. Não ficamos mais bem-dispostos ao lê-lo ("Para onde vão os guarda-chuvas" teve esse dom como nenhum outro), mas ficamos com certeza mais conscientes do que é esta coisa de viver. 

".. já não cabemos na nossa pele"

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 (...) porque nós temos um tamanho, uma proporção, mas por vezes ficamos gigantes, vastos como as searas do sul. A esperança faz-nos crescer, as pernas alongam-se, os cabelos confundem-se com o vento, as unhas das mãos arranham as estrelas mais distantes, já não cabemos na nossa pele.

"Flores", Afonso Cruz

Trrrim, trrrrim...

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Tenho a certeza de que a vida morre com rotina e não com a morte, e que o hábito nos petrifica, um dia olhamo-nos ao espelho e estamos transformados em estátuas (...) 

(...) queremos o conforto da banalidade, daquilo que conhecemos, sentarmo-nos num restaurante e pedir sempre o mesmo bitoque, olhar para a corrupção quotidiana como quem olha uma montra de um pronto-a-vestir, fazer sempre as mesmas maldades, dobrar as camisolas da mesma maneira, votar nos mesmos criminosos, saber que as meias estão na gaveta certa, ignorar a miséria e ter a certeza absoluta de que os chapéus jamais serão pousados em cima da cama. 

(...) A consciência da morte é o que nos desperta dessa morte em que vivemos, que nos diz o que deveríamos ter feito, o que deixámos de fazer, a morte é um despertador que nos acorda para a inevitabilidade dos nossos erros. Trrrrim, trrrim, morreremos em breve, temos de agir, de resistir. Não desistiremos. A solução seria termos todos uma caveira na mesinha-de-cabeceira, como fazem os monges cartuxos, para nos servir de despertador e todos os dias sabermos que temos de acordar, não para viver a rotina fatal do quotidiano, mas a vida apaixonada de alguém que ainda sabe que existem nuvens, céu e beijos. 

"Flores", Afonso Cruz

«A Boneca de Kokoschka", Afonso Cruz

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O pintor Oskar Kokoschka estava tão apaixonado por Alma Mahler que, quando a relação acabou, mandou construir uma boneca, de tamanho real, com todos os pormenores da sua amada. A carta à fabricante de marionetas, que era acompanhada de vários desenhos com indicações para o seu fabrico, incluía quais as rugas da pele que ele achava imprescindíveis. Kokoschka, longe de esconder a sua paixão, passeava a boneca pela cidade e levava-a à ópera. Mas um dia, farto dela, partiu-lhe uma garrafa de vinho tinto na cabeça e a boneca foi para o lixo. Foi a partir daí que ela se tornou fundamental para o destino de várias pessoas que sobreviveram às quatro toneladas de bombas que caíram em Dresden durante a Segunda Guerra Mundial.

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   Também aqui estou quando é preciso dizer: não gostei. Ou se calhar não o percebi, mas este livro é uma grande confusão e um enorme emaranhado de personagens e histórias que não prometem muito e não nos oferecem nada de novo ou emocionante. Uma série de coincidências e vidas cruzadas, sem grande referência a essa boneca de Kokoschka. 

   A velocidade a que o li é apenas explicável pela minha vontade de sair rapidamente daquela história. 

Os anos são uma batedeira eléctrica para a moral

É muito cansativo ter um passado tão grande. Quanto mais envelhecemos, mais o mal se mistura com o bem. Um momento de felicidade, quando acaba ,transforma-se num drama; e uma tragédia, quando acaba, transforma-se numa felicidade. Tudo misturado. É muito difícil separar as coisas com clareza. É o contrário do que se diz: a velhice não traz clareza nenhuma. Os óculos que usamos para os olhos não têm equivalente para a alma. As memórias ficam desfocadas, o bem e o mal misturam-se. Os anos são uma batedeira eléctrica para a moral. 

"A Boneca de Kokoschka", Afonso Cruz

O salto

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 - Sr. Vogel, se não estiver contente com o rumo das coisas - disse Isaac -, só tem de fazer uma coisa muito simples: juntar os dois pés, concentrar-se e dar um pequeno pulo na vertical. Quando os seus pés tocarem no chão outra vez, a realidade do chão, quando deixarem esse momento celeste que é o salto, quando tocarem o chão, dizia eu, provocará um pequeno tremor que abalará a direcção do universo. Se iam em determinado sentido, sentido que, por certo, não lhe agrada, basta pular para ver mudar o rumo. Mas porque o tremor é muito pequeno, os efeitos não se notam de imediato, no entanto, se pudesse olhar para o futuro, veria como foi diferente daquele futuro em que não pulou. A vida é feita destes saltinhos. 

"A Boneca de Kokoschka", Afonso Cruz