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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

Crónica de uma (provável) gripe a

  

  Ontem à noite fui à urgência de um hospital privado, que isto de pagar um seguro de saúde todos os meses é para ser aproveitado. E porquê que fui? Ora bem, febre, dores no corpo, dores de ouvido, dores de garganta, arrepios de frio, vómitos, diarreia (uma coisa nada bonita de se escrever. Sorry!). Não preciso de dizer mais nada, certo?

  Lá fui eu, de fato de treino (calças a não combinar com a camisola!), sapatilhas, casaco comprido, luvas, chapéu, cachecol...(quase ditei uma nova tendência Inverno 09, tal era o sortido de peças). Não me senti nunca num hospital, o que me tranquilizou logo à partida. Não vi macas, não vi agulhas, não me cheirou a hospital e, principalmente, não vi uma sala de espera a abarrotar de gente. Aguardei uns 2 minutos, se tanto. Fui bem atendida, expus o meu caso e ganhei um belo atestado para 7 dias de "clausura" e uma bonita máscara da moda.

    Gripe A, perguntam vocês assustados. E eu respondo: provavelmente. Posso colocar um visto em todos os sintomas daqueles avisos "se tem/sente isto, isto, isto e isto...", daí que o mais sensato me pareceu saltar a Saúde 24 e uma provável longa espera nos centros de atendimento à gripe, tomar todas as precauções e deslocar-me ao hospital. A Sra. Dra. parecia um tanto atrapalhada com o computador e até se esqueceu de registar as tensões, a temperatura, a oxigenação e essas coisas bonitas que o nosso corpo traduz em números. No final, foi clara. "Está com uma faringite, mas dado os sintomas, é um provável caso de gripe A. Se for, os pais já estão infectados, por isso máscara em casa dispensa-se. Sair de casa, nem pensar. E não se preocupe que o curso da gripe A é o de uma gripe normal, desde que não passe para os pulmões. Até porque morrem todos os dias 2 milhões de pessoas no mundo com gripe e parece que ninguém se lembra disso agora. Por dia! Por isso, muito descanso, chás, leite, mel e atenção aos pulmões. Se sentir alguma alteração respiratória tem de voltar".

  E lá vim eu, de máscara, com os olhares desconfiados das gentes, e uma tristeza muito grande por ir faltar ao meu primeiro jantar de Natal de trabalho (hoje), por a minha "amiga secreta" ficar sem prenda, por eu ficar sem prenda da minha amiga secreta, por faltar ao trabalho (não é que sinta falta dele, mas quando se trabalha a recibos verdes as faltas ganham uma nova dimensão) e por ter de passar um fim-de-semana pré-natalício fechada em casa, no quarto, a receber o meu Mr. Big de máscara verde (uma daquelas da imagem sempre dava um toque fashion qualquer)! Qualquer semelhança com um ogre é mera coincidência natalícia.

   Conclusão: estou como a canta a música que tanto gozei "Sem beijinhos, nem abraços, nem apertos de mão...não é desprezo é apenas protecção".

 

Nota: a máscara é uma coisa muito desconfortável de se usar. Parece que não nos deixa respirar e se juntarem a isso uma cara a ferver de febre, a coisa piora significativamente, porque aquilo sobe-nos a temperatura a uma velocidade estrondosa. Ou pelo menos assim parece.

Relatório médico

   E afinal o problema está mesmo no coração e não na minha cabecinha. Ao que parece tenho "não-sei-o-quê supraventricular", uma doença congénita, benigna, que provoca arritmias cardíacas que levam o meu coraçãozito a bater acima das 200 pulsações, de repente, do nada, causando a pior sensação do mundo - "Segurem-me que eu vou cair e o meu coração vai parar de bater". O que se passa é a nível dos componentes eléctricos do coração, na condução dos sinais e sangue durante as batidas. Existem 2 caminhos de condução, o organismo normal usa apenas um. Eu de vez em quando lembro-me de usar os dois e tomá lá 200 batidinhas assim de repente para aprenderes. Em linguagem leiga, foi isto que captei.

   Conclusão: medicação, fraca para começar, na esperança de controlar a situação. Caso não melhore, medicação mais forte e colocar a possibilidade de uma pequena intervenção para fechar o tal  caminho que uso sem dever usar.  

   E agora a vida continua na normalidade de sempre, sem restrições e sempre que pum pum pum tentar deitar-me de imediato.

   Estou mais descansada por saber que não é nada de muito grave, mas ainda não me habituei à ideia de ter esta coisa, que pode surgir  tão de repente e que me deixa de rastos. Sinceramente, o que eu tenho agora é medo constante de que me dê uma crise. Com o tempo aprendo a lidar com isto, até me esquecer dela e a malandra desaparecer um bocadinho mais a cada comprimido que engulo.

Prisioneiros do próprio corpo

   No hotel onde passei estes dias de descanso decorreu um encontro de familiares e doentes com ataxia. A Ataxia é uma doença neurodegenerativa que provoca uma forte e inevitável perda da coordenação e movimento de todos os músculos do corpo. Tudo acontece nas regiões do sistema nervoso responsáveis pelo controlo muscular dos movimentos e as manifestações (ou consequências) afectam gradualmente diversos movimentos corporais, começando na maior parte dos casos pela coordenação das pernas e, portanto, pelo andar. Do andarilho à cadeira de rodas, das pernas aos braços, e daí a todos os músculos do nosso corpo. Não há um que escape. A dada altura a nossa face perdeu toda a expressão, a cabeça não é mais capaz de permanecer erguida, a boca teima em não fechar e até as pálpebras são demasiado pesadas para as mantermos abertos.

   Foi este o cenário a que assisti durante 3 dias. Jovens, jovens demais, e adultos de meia idade, prisioneiros do seu próprio corpo, agarrados a uma cadeira de rodas, totalmente dependentes de terceiros. Enquanto uns corriam nos campos de ténis e paddle e outros se atiravam para a piscina, eles continuavam nas suas cadeiras de rodas, olhar perdido e mente sabe-se lá onde, cada um não sabendo como será o dia seguinte: será que a mão ainda vai mexer, será que conseguirei comer sozinho, será que já não poderei falar?

   Num desses dias um grupo de jovens atáxicos foi meu "vizinho" na piscina. Demasiado jovens, demasiada vida perdida, demasiada vida que ficará por viver, porque um dia os músculos fundamentais para as funções básicas serão também afectados. Entre um e outro olhar mais justificadamente triste, os risos e sorrisos foram uma constante. Para muitos já não havia um sorriso esboçado na face, mas exteriorizavam-no com sons de felicidade. Estavam em amena cavaqueira uns com os outros, contando piadas, gozando, vivendo. Os que podiam tiravam fotos, os que não podiam pediam para tirar. Todos diziam "Me voy a bañar" e lá usufruiam das excelentes condições proporcionadas pelo hotel para pessoas com mobilidade reduzida. Eram jovens com destino marcado, mas não os vi lamentarem-se (ao contrário dos seus pais), não os vi resignados à sua doença. Arranjavam-se todas as noites para o jantar, de dia vestiam bonitas roupas de praia, esticavam-se nas espreguiçadeiras e conviviam.

   Ao olhá-los dei por mim a pensar no que somos e no que poderemos ser. Dei por mim a amaldiçoar todas as vezes que lamentei de alguma forma qualquer momento da minha vida. Muito do que diariamente vivemos não é nada quando comparado com o que aquelas pessoas têm de viver. Os nossos dias são uma benção quando comparados com a batalha que cada dia representa para aqueles, e outros, doentes. Por isso, vamos pôr os olhos naqueles e noutros seres que lutam e lutam todos os dias para vencerem inimigos invencíveis. Vamos agradecer seja a quem ou ao que for pela vida que temos, pela liberdade de escolha, de movimentos, de pensamentos, de sentimentos. Ninguém sabe o que o dia de amanhã lhe reserva, mas, para alguns, o dia de amanhã trará um destino pior do que o de hoje. Para alguns, o dia de amanhã não é mais um dia de vida, mas sim menos um dia na sua breve passagem por este mundo. E esses continuam a sorrir e a viver. Esses são o exemplo do verdadeiro VIVER.

 

   Um bem-haja a todos aqueles que sofrem com uma doença que os arrancará à vida e mesmo assim continuam a sorrir, a sorrir, a sorrir...