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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

Histórias com gente dentro

   A desumanidade de alguns humanos é coisa que eu nunca vou ser capaz de compreender, por mais que me esforce e por mais que o meu emprego me ponha à prova e me mostre que nisto das relações humanas tudo é possível. A verdade é que apesar de realmente tudo ser possível, nunca estamos preparados emocionalmente para tudo.

   Apesar de enquanto psicóloga apenas eu já ter uma forte ligação com os meus velhinhos, ser coordenadora veio-me trazer toda uma nova perspectiva e responsabilidade sobre eles. E isto nem sempre é fácil de gerir, especialmente quando gostamos do que fazemos e sentimos que estar ali para eles é realmente algo que nos preenche e realiza. O difícil é saber até onde é que vai a minha responsabilidade e quais os limites do meu envolvimento. O difícil é saber dizer "a minha função termina aqui, porque eles são meus clientes e não meus familiares". O difícil é não tomá-los como meus. E o mais difícil é desligar esse botão do "profissional/pessoal" quando sabemos que quando não estamos, não há mais nada para além do abandono e da solidão. O difícil é saber que se eu e a minha equipa não fizermos um esforço diário que por vezes vai para além do tolerável aquela pessoa passa os dias numa cama gelada, humanamente falando, numa casa sem condições, sem atenção, sem cuidados, sem comer, sem afecto, sem visitas. Duro é eu saber que se eu não estiver lá para chamar o INEM ou os receber quando têm alta hospitalar, mais ninguém está. Duro é saber que os serviços sociais contam mais comigo do que com os filhos. Duro é saber que eu faço mais por eles do que um filho. E verdadeiramente duro é eu ter de repetir diariamente para mim própria "eles não são a minha família". Mas para muitos deles, eu e a minha equipa, somos tudo o que eles têm. 

   Não será isto também uma forma de terrorismo, tão grave como qualquer outra? 

Dos meus dias difíceis

   Nunca equacionei realizar o meu trabalho de psicóloga sem criar relações/ligações com as pessoas que encontro. Já aqui escrevi sobre isso noutra altura e nesta fase profissional em que me encontro percebo mais do que nunca que essa era, apesar de tudo e de todas as indicações para fazer precisamente o contrário, a única forma de fazer o meu trabalho bem feito. 

   O ser humano vive de relações e ligações. Muitas das pessoas junto das quais exerço as minhas funções não têm uma rede social ou de ligações forte. Muitas não têm sequer qualquer tipo de relações para além das que estabelecem com as pessoas que lhes prestam algum serviço. Durante este 4 anos e meio de trabalho na instituição enquanto psicóloga criei relações com muitas pessoas, especialmente idosos, que hoje sei que eram relações verdadeiras e fortes. Nesta altura de mudança de funções, interromper essas relações é um imperativo. Comunicar a quem se habitou a ver-me como um membro da família e alguém em quem podiam confiar o que muitas vezes não confiavam a mais ninguém que vão deixar de me ter tem sido duríssimo. Ver nos olhos dos que acompanho que já sentem a minha falta, que ficam decepcionados, tristes, alguns até mesmo chateados, é algo que difícil de gerir interiormente. Mas é também a prova de que estava a fazer o meu trabalho da melhor forma possível; que dei o melhor de mim, que dei muito de mim, mas que não me arrependo. Não podia ser de outra maneira. Não podia ser com outra intensidade. Estive lá para eles. Não sempre que eles precisavam, mas estive muitas vezes. E é por isso que é tristeza que eu vejo nos olhos deles por estes dias. Mas também é por isso que todos eles, sem excepção, me dão os parabéns, me desejam o melhor deste mundo e do outro em sucesso e felicidade e transmitem a sua alegria por me verem "subir de posto". 

   Criar relações também é isto. Também é ficarmos tristes e felizes ao mesmo tempo com uma mudança e transmitirmos isso ao outro. Ser psicóloga é isto. É dar uma parte de nós ao outro que precisa; é ficar com uma parte do outro em nós; é criar uma ligação que quando tem de levar um ponto-e-vírgula (porque eu não gosto de pontos finais, muito menos parágrafos) que nos deixa o coração e a alma duplamente apertadinhos: de tristeza pelos que deixamos e de alegria por levarmos cá dentro tanto de tantos, com a certeza de termos feito a diferença na vida de alguém. E a mim, é isso que me move. 

É só ser aquilo que eles precisam

   Das coisas que eu mais gosto do meu trabalho de psicóloga junto da população idosa é a sensação de familiariedade que construo com os nossos idosos, especialmente com aqueles que visito em casa, ao ponto de lhes conhecer rotinas como se das minhas se tratassem, de antecipar o que dirão ou como irão reagir em determinada situação, de saber onde têm guardada qualquer coisa de que necessitamos, de conseguir terminar uma história porque já a conheço de cor e salteado (e acreditem que memorizar as histórias das muitas dezenas de idosos que "me passam pelas mãos" não é fácil) ou de poder dizer as coisas mais disparatadas e rídiculas pois eles aceitam qualquer brincadeira.

   Este tipo de relação de proximidade poderá não ser consensual. Mandam as leis que não haja envolvimento emocional entre o técnico e o "cliente" (detesto este termo!), mas quem trabalha na área social e com idosos sabe que isso é completamente impossível e até mesmo de evitar. É preciso construir uma relação emocional com aquelas pessoas; é preciso conquistá-las, agarrá-las, conhecê-las, para depois as poder enriquecer. Muito mais do que trazer as vidas dessas pessoas cá dentro, eu sou parte da vida delas. É isso que eu vejo no sorriso delas quando entro nas suas casas. Estou claramente a ver, neste momento, a cara gordinha da D. C. quando entro, a sorrir muito, e a dizer "Olha a Sra. Dra"; ou o Sr. C., fotocópia do velhinho de filme UP - Altamente!, a abrir-me a porta e dizer com a sua voz rouca pelo tabaco enquanto me dá dois beijnhos "que riqueza, que amor..."; ou a D. A., cujo filho me anuncia como "chegou a sua menina!", que me abraça sempre muito e se despede sempre, sempre, sempre, com um "quando chegar ali ao fundo olhe para trás que eu quero dizer-lhe adeus"; ou a D. E., que em private joke apelidamos de condessa da Foz, que me diz um sincero "a Sra. Dra. é minha amiga, gostei tanto de a conhecer"; ou a D. A. e o seu "quem é? Ah, é a minha menina doutorinha psicóloga"; ou ainda a Sra. M, que ainda hoje me dizia "gosto tanto de si, mas gosto mesmo, não é dizer por dizer, gosto mesmo, porque é tão boa, tão simpática, faz-nos tão bem...faz-me tão bem..." ... Estes e todos os outros que me dizem sempre "Até para a semana" e que cobram caso eu não não consiga aparecer com um "já perguntei por si, estava farta de pensar em si, esteve doente, já pensei que me tinha abandonado..."

   Será que alguma vez conseguiria este tipo de relação se deixasse o emocional e os sentimentos fora de portas? Será que alguma vez seria mais a amiga, a menina, do que a psicóloga que lá vai, se me limitasse a seguir a ética e os manuais? 

   Estes idosos precisam disto. Precisam de quem lhes leve um pouco do muito que já não têm. Precisam que lhes mudem a vida, ainda que por alguns minutos, ainda que uma vez por semana apenas. Eles precisam de mim e todos nós que lá vamos colmatar as suas dificuldades. Mas nós também precisamos deles. Porque ao darmos tão pouco, coisas tão simples como um sorriso e um "olá minha querida, como está hoje?" recebemos tanto, mas tanto, que não é possível mensurar. E mais do que ganhar uma nova família, torno-me a família que não têm e sinto, sem hipocrisias, que sou importante na vida de alguém. E isto torna-nos, sem dúvida, pessoas melhores, mais completas e mais felizes. 

Histórias com gente dentro (e solidão, muita solidão)...

   Muito do meu trabalho (cerca de 90%) é feito literalmente no terreno, na rua, e passa por realizar visitas domiciliárias aos nossos idosos e às suas famílias, especialmente os casos de maior isolamento social. Atendendo à localização geográfica dos nossos centros sociais, começo a conhecer os bairros sociais do Porto quase tão bem como a minha casa. E apesar de tudo o que se diz estes bairros, o que há em excesso neles é, e isto é um facto, uma população envelhecida e só. Durante a minha manhã de visitas da passada sexta-feira, ia eu em passo apressado para tentar "cumprir a agenda" e fugir da chuva, e ouço um "menina". Facilmente encontrei a origem: uma idosa a acenar-me, ainda relativamente distante de mim, com duas cartas na mão e um "ajude-me aqui a ver para quem são estas cartas e de onde vêm". Fui ao seu encontro e o esclarecimento que pediu sobre as cartas foi apenas o rastilho para que a idosa me expusesse toda a sua vida. De solidão, claro! A D. Custódia (assim mesmo, nome completo, porque quero que a D. Custódia seja uma pessoa e não apenas uma letra), que nunca me tinha visto, desabafou comigo, ali na rua fria e molhada, as suas preocupações, as suas tristezas, a sua solidão, a sua velhice. Quando lhe expliquei quem era, o que fazia e onde trabalhava e que até podia ter uma solução para atenuar a sua solidão, a D. Custódia deu a habitual resposta "para um centro de dia? Mas eu não quero deixar a minha casinha". E de imediato me tentou empurrar para a sua casa e me convidou para entrar, o que eu não fiz com muito custo, mas não me pareceu uma atitude correcta. Na hora da despedida, a D. Custódia abriu os braços e saiu-se com um "oh minha rica menina, dê-me um beijinho e um abraço". E abraçou-me. Com força, com muita força. Com a força dos que não estão habituados a ter os abraços que precisam. Ainda houve tempo para um "se anda a visitar os velhos que vivem sozinhos, quando quiser venha a minha casa. Eu ia gostar tanto." 

   Eu também ia gostar tanto de visitar a D. Custódia. Mas sobretudo, ia gostar de ver e viver num mundo onde estas situações não seriam tão frequentes. Até lá, vou continuando a fazer a minha parte e a reduzir a solidão dos meus. 

Histórias com gente dentro...

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A D. J. é a velhinha que eu quero ser quando for grande!

Hoje, em mais uma visita domiciliária, encontrei-a preocupadíssima com o facto de não conseguir fazer sozinha a sua árvore de natal. Quando temos mais de 90 anos, vivemos sós e não temos absolutamente nada nem ninguém na vida e nos preocupamos com coisas como enfeitar a casa para o Natal ou para o S. João (são os 2 momentos em que a casa da D. J. é uma miscelânea de enfeites!) só podemos ser especiais e só por isso já merecemos uma grande salva de palmas. Foi por isso que não resisti e lá andamos a montar a árvore de natal, entre luzes, fitas, bolas e muitos espirros, à procura do material necessário em caixotes carregados de pó.

No final, quando o olhar dela já brilhava mais que as luzes coloridas no pinheiro, ainda houve tempo para: "oh, que pena, agora só me falta comprar um ano velho". Perante a minha admiração, "então não sabe? Espere, tem outro nome... o velhote", "ah, o pai natal! É o pai natal, não é o ano velho, D. J.". "E então? Não é velho ele? Então é o ano velho!".

E lá vim eu carregada de sorrisos com a alegria dela por ter o natal em casa antes do fim de novembro, com duas bolas de natal para a minha árvore oferecidas pela D. J. e a clara certeza de que é muito fácil fazer alguém feliz. Hoje, era apenas isto que a D. J. precisava. Não era de conversar, de desabafar... provavelmente dos momentos mais enriquecedores da minha vida profissional. 

Porque um dia podemos deixar de sermos nós

Vale a pena perdermos uns minutinhos a ler este testemunho de alguém diagnosticada com doença de Alzheimer: 

Qualquer dia, Menino Jesus, talvez deixe de saber governar-me sozinha; talvez deixe de saber lavar-me, vestir-me, de andar; talvez deixe de saber o que digo; talvez comece a ter que usar fraldas. Talvez, Menino Jesus, passe a ser outra vez bébé e desaprenda tudo quanto fui aprendendo ao longo de tantos anos. Talvez me sinta perdida, sem compreender onde estou, que dia é, quem são as pessoas que me rodeiam. Talvez possa até haver alturas em que já nem saiba quem sou. E então, Menino Jesus, é natural que ninguém da minha família tenha condições físicas e psicológicas para  tomar conta de mim. É natural, Menino Jesus. É triste, mas é natural que eu tenha que ir para um lar.   Mas, ó Menino Jesus, por favor, não me deixes ir para um lar daqueles que parecem a sala de espera da Morte, onde todos os velhos estão sentados a olhar o vazio, apenas à espera, à espera de partir para o Além.  Eu sei, Menino Jesus, que ser empregada num lar de velhos é um trabalho difícil. Ganha-se mal e o trabalho é duro. Não é agradável mudar fraldas, dar banho a corpos velhos, falar com pessoas que não ouvem ou não percebem o que dizemos. Mas, Jesus Menino, enche os corações dos que trabalham em lares, de ternura, de afecto, de respeito, para que não me gritem quando eu não entender o que me dizem, para que nunca me tratem como uma coisa, mas sempre como pessoa. E que quanto mais “vazia de mim” estiver, quanto mais pobre de corpo e de inteligência, mais me atendam, mais me escutem. Que nunca se esqueçam dos meus remédios, que nunca me dêem remédios a mais para eu ficar calada e quieta, que não me deixem ficar sentada ou deitada para sempre, a olhar o vazio, o tecto, à espera da morte.

http://alzheimerportugal.org/pt/text-0-16-76-176-testemunho-de-fernanda-ruaz

No Dia Internacional do Idoso

   O trabalho diário com idosos (e seus familiares) oferece-nos imensas oportunidades de aprendizagem e, acima de tudo, inestimáveis lições de vida. Pessoalmente, costumo afirmar, em jeito de brincadeira séria, que carrego cá dentro muitas vidas, vidas que não são minhas mas que me ensinam o que só a experiência e as vivências nos podem ensinar. As vidas que trago cá dentro são vidas feitas de histórias com gente dentro, gente essa que muitas vezes a sociedade discrimina, afasta, encosta a um canto. Para quem lida com o bom e o menos bom da vida e do envelhecer os desafios são inúmeros e diários. Mas, provavelmente, também é isso que nos alimenta os dias e nos faz gostar verdadeiramente daquilo que fazemos.

   Em pleno ano de 2014, numa época em que tudo o que no século passado parecia utopia já aconteceu ontem, continuamos a encontrar idosos sem as condições mínimas de subsistência, como por exemplo, sem luz ou água quente, e que, ainda assim, resistem às nossas tentativas de ajuda ou sugestões de alteração do seu estilo de vida – coisas simples como deslocarem-se ao centro de dia para tomar banho quando não têm água quente, aceitarem apoio para resolução de situações de corte de luz de há mais de 10 anos ou realização de higiene habitacional. Mais do que resolver estas situações, que na sua maioria são complicadíssimas, não só pela dita resistência do idoso, mas também pela escassez de respostas sociais imediatas, é necessário alterar mentalidades e representações mentais, já que para estas pessoas estas condições são tidas como “normais” e perfeitamente aceitáveis. Não me recordo de ter conhecido algum idoso a viver nestas condições desumanas que alguma vez tivesse reconhecido que viver no meio de lixo simplesmente não é viver e que merece muito mais do que isto. Acima de tudo é preciso respeitá-los, mas não desistir destes idosos, nem nos acomodarmos na certeza de que “fizemos tudo o que podíamos”, porque há sempre algo mais que podemos fazer pela qualidade de vida de alguém que, muito provavelmente, já perdeu toda a vontade de viver.

   A questão que se impõe é: onde está a família nestas situações?  A frieza, distanciamento e ausência de sentimentos com que algumas famílias tratam os seus (que acabam por ser mais nossos) idosos é das coisas que mais me revolta no meu trabalho. Quase diariamente me deparo com exemplos vergonhosos que me fazem questionar até onde o ser humano é capaz de ir na sua indiferença para com outros seres humanos. A solidão em que muitos idosos são deixados a (sobre)viver é uma das maiores epidemias dos tempos modernos e daquelas coisas em que pensamos enquanto nos encaminhamos para o conforto das nossas casas, onde sabemos que temos sempre alguém à nossa espera. Por um lado porque projectamos aquela solidão no nosso futuro e na possibilidade de também nós acabarmos sós e por outro, porque a solidão é talvez aquilo que mais sofrimento causa a um idoso, causando uma corrosão interior tão dolorosa que a morte emocional é inevitável. E a pior solidão é aquela que não é solidão, mas sim abandono (porque há a solidão que é quase obrigatória, quando não existem familiares vivos, por exemplo). As desculpas que os filhos arranjam para não estarem presentes na vida dos pais e as desculpas que os próprios pais arranjam para a ausência dos filhos davam tema para outro artigo, mas resumindo, os idosos estão abandonados porque há filhos se esquecem que o são, e esquecem que, algures, o pai e/ou a mãe estão abandonados e entregues a si próprios, a viverem sabe-se lá como e à custa de quê. Para estes filhos, uma questão apenas: "mas estes não são os seus pais?” Não deveria isto, que já é tudo, ser suficiente para nunca falharmos no amor e dedicação?  E como se não bastasse, temos ainda os próprios idosos, os pais, a desculparem estas ausências com um rol de justificações de quem não quer acreditar que foi abandonado. Quantas vezes aqueles pais anularam as suas vidas para estarem presentes na vida dos filhos, para mudarem uma fralda, para passarem uma noite em branco à espera que a febre baixasse, para terem o que lhes dar de comer e vestir... quanto sacrifício não terão eles feito para agora os filhos serem essas pessoas cheias de afazeres e cargos importantes que nem lhes deixam tempo para visitar quem lhes deu o mundo? Apenas um desabafo…

 É de dedicação humana que os nossos idosos precisam. E mais do que isso, o que temos de dar aos nossos idosos diariamente é um comprimido que não se vende na farmácia – o afecto. Como o Papa Bento XVI disse um dia “Quem acolhe os idosos, acolhe a vida”. 

Histórias com gente dentro

   E se, no vosso funeral, estivessem apenas 3 pessoas presentes, nenhuma delas familiares, mesmo ainda os existindo vivos? 

   Não gosto de funerais. Não gosto de olhar corpos mortos e expostos. Não gosto de os ver não respirarem. Mas o que verdadeiramente me impressionou, e doeu, neste funeral, foi a ausência de gente capaz de sentir a perda do Sr. M., principalmente quando sei que aquela morte àquelas três pessoas significava pouco mais que a perda de um vizinho. 

  Os nossos idosos vivem sós. Com toda a dor que isso carrega consigo. Mas morrermos sós, sem ninguém que nos chore, é o limite do abandono. É não ter dignidade humana nem mesmo na hora da partida. 

   Pensem nisto. E nos vossos. 

Obrigado!

   Quantas vezes não nos esquecemos de dizer "obrigado"? Mas aqueles "obrigados" verdadeiros e fortes, aqueles que agradecem por acções, gestos, palavras, momentos, o que quer que seja que, em algum momento da nossa vida, fez toda a diferença... Com o ritmo alucinante a que os dias correm e a tendência para estarmos todos cada vez mais distantes e frios nas relações humanas, "obrigado" começa a ser tão raro como um sorriso.

   Os CTT estão a convidar os portugueses a escreverem mensagens de “obrigado” que serão transformadas em cartas físicas pelos Correios e enviadas aos seus destinatários. Eu achei esta ideia muito gira quando a ouvi na rádio e de imediato criei mentalmente uma actividade a desenvolver com os meus idosos, que vai passar precisamente por os ajudar a dizer "obrigado" a alguém que fez ou faz parte da sua vida. Vamos chamar a isto "Carta de Gratidão" (quem conhece o programa de intervenção com pessoas idosas "PositivIDADE" já ouviu falar disto) e o que os vou incentivar a fazerem, depois de uma breve sensibilização e discussão da importância do "obrigado" na nossa vidaem grupo, é a escreverem (ou ditarem, para aqueles que não são capazes de ofazerem sozinhos) uma carta a dizerem "obrigado" a alguém. Os CTT transformam cartas digitais em cartas de papel e caneta, eu transformarei palavras orais em palavras escritas. O objectivo final, para além da consciencialização da importância do obrigado, será o de fazer chegar essas palavras aos seus destinatários, se possível, num encontro entre as duas partes.

   A começar ainda este mês!

 

Histórias com gente dentro

   Já vos falei aqui do Sr. A., um dos nossos idosos mais queridos e uma das pessoas com quem mais gosto de conversar. O que eu ainda não vos contei acerca do Sr. A., é que, nos seus 95 anos fabulosos, dispensou a empregada que a filha teimava em ter lá em casa duas vezes por semana, e assumiu o próprio a total gestão da sua casa, incluíndo a limpeza completa, profunda e diária da mesma. Acrescenta ele que, não só está perfeitamente capaz de fazer todas as tarefas domésticas, como as mesmas lhe permitem fazer ginástica e estimular os movimentos (ai se nós pensassemos assim nos dias de limpeza era tão bom!).

   E que casa impecável ele tem (confesso que sempre julguei que era uma empregada que a limpava)! No dia em que descobri isto - e apesar de o conhecer há 3 anos, a cada visita descubro algo novo sobre o Sr. A. - ofereceu-me uma irrepreensível lição de como manter uma casa impecavelmente asseada, perfumada e sem qualquer sinal de pó, mesmo nos locais onde até eu o deixaria escapar - e sim, eu fui comprovar a sua ausência.

   Perante esta revelação, cada vez mais compreendo as suas palavras de revolta contra "aqueles velhos que passam os dias afundados numa cadeira nos centros de dia ou em casa". Quem me derá que o caso do Sr. A. não fosse uma excepção à regra e que mais dos meus idosos pensassem (e se mexessem) assim.

   Quando for grande quer ser assim!