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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

Intragável é não estar apaixonado

Intragável é não estar apaixonado. Por uma mulher, por um homem, por um gato, por um cão, por um cheiro, por um sol, por uma casa, por uma pele, por um sabor, por um sonho, por um trabalho, por um caminho, por um desejo, por um pecado. Apaixonado. Como um louco. Apaixonado. Inconsequentemente, desvairadamente. Sem parar. Apaixonado. Com todas as veias à procura da paixão, com todo o corpo à procura do prazer. Intragável é o que não é extraordinário. E as coisas extraordinárias não exigem actos extraordinários. As coisas extraordinárias só pedem momentos fáceis.

Pedro Chagas Freitas, "Prometo Falhar"

Amor

Não importa como vai ser o dia, o que raios vou ter de suportar, o que vou ter de fazer para a vida à volta acontecer, há tantas coisas para nos magoar, tantas lágrimas que sabemos que não podemos vencer, mas não importa o que vem aí se no final de tudo a noite e tu, a nossa cama, estender o corpo e ouvir-te respirar é quanto basta, tantos infernos e o teu instante parada em mim, o melhor dos dias é aquele que te traz.

Pedro Chagas Freitas, "Prometo Falhar"

Parece fácil...

O pior de tudo é o corpo que a vida tem de aguentar, somos feitos de trampa e temos de o suportar, é nos pequenos gestos que o velho acontece, quando tenho de dobrar para apanhar um papel do chão, quando tenho de descer as escadas e os joelhos doem, quando até os braços ao escrever me mostram que hei-de acabar. (...)

O tempo passa-nos inteiros, e o pior é o que nos lembramos perfeitamente do que já fomos capazes de fazer, que desgraça. (...)

Era uma vez e já foi, a melhor maneira de um velho sofrer é acreditar no que não existe em si (...)

Bastava trocarmos o corpo para continuarmos, parece simples para um Deus que inventou isto tudo, não parece?

Um velho é uma biblioteca, que miséria a minha, só queria aprender e tenho de me contentar com ensinar (...)

Pedro Chagas Freitas, "Prometo Falhar"

Ama.Te

Ama.
Lavar os dentes ao lado de quem amas.
Apalpar-lhe descaradamente o rabo.
Comer chocolates até te fartares.
Passar a noite a dizer asneiras.
Beijar sempre de língua.
Passar o dia a dizer asneiras.
Mandar o chefe bugiar.
Passar a vida a dizer asneiras.
Deixar declarações de amor escondidas pela casa.
Fazer o teu pai feliz.
Preguiçar regularmente.
Fazer a tua mãe feliz.
Atirar o despertador à parede periodicamente.
Fazer quem tu puderes feliz.
Dormir quinze ou vinte horas seguidas.
Pôr a mão de fora do vidro do carro.
Pintar o cabelo de azul ou de amarelo.
Pôr a cabeça de fora do vidro do carro.
Cantar no banho para todo o prédio ouvir.
Lamber a tampa dos iogurtes.
Correr que nem um louco na praia.
Falhar que nem um burro só porque tentas.
Praticar sexo oral com frequência.
Tentar que nem um burro só porque queres.
Mudar a decoração de casa num dia só.
Dançar quando estás feliz.
Passar horas só a cuidar de ti.
Dançar quando estás triste.
Dizer bem de quem amas.
Enfiar o dedo no nariz às escondidas.
Dizer bem de quem não amas.
Dançar enquanto estás vivo.
Guardar segredos inconfessáveis.
Experimentar posições sexuais improváveis.
Contar segredos inconfessáveis.
Ter segredos inconfessáveis.
Ver quanto dá o teu carro.
Dizer o que não se pode dizer.
Cagar assiduamente nas convenções sociais.
Sonhar com o que não pode acontecer.
O orgasmo sempre que puderes.
Coçar e ser coçado nas costas.
O gemido sempre que souberes.
Passar muitas horas a contar anedotas.
Adormecer todo torto no sofá.
Passar muitas horas a ouvir anedotas.
Rir que nem um desalmado.
Fazer um penteado estrambólico só porque te apetece mudar.
Rir por tudo e por nada.
Chorar a torto e a direito.
Rebolar na areia quando estás todo molhado.
Chorar porque também é um direito.
Abraçar o teu gato ou o teu cão.
Mandar a austeridade tomar no cu.
Beijar incansavelmente.
Não te levares minimamente a sério.
Dispensar quem te chateia.
Tocar um instrumento qualquer.
Perdoar quem é humano.
Desistir do que não te serve.
Lutar pelo direito à parvoíce.
Escrever um livro.
Dar prioridade ao prazer.
Ler um livro.
Nunca desistir de quem amas.
Aprender desvairadamente.
Fazer cadeirinha com quem amas.
Ensinar desvairadamente.
Perder a respiração pelo menos uma vez por dia.
Nascer pelo menos mais uma vez do que as vezes em que morreres.
Viver desvairadamente.
Te.
Pedro Chagas Freitas, "Prometo Falhar"
 

«Prometo Falhar», Pedro Chagas Freitas

Prometo Falhar" é um livro de amor.O amor dos amantes, o amor dos amigos, o amor da mãe pelo filho, do filho pela mãe, pelo pai, o amor que abala, que toca, que arrebata, que emociona, que descobre e encobre, que fere e cura, que prende e liberta.O amor.No seu estilo intimista, quase que sussurrado ao ouvido, Pedro Chagas Freitas leva o leitor aos estratos mais profundos do que sente. E promete não deixar pedra sobre pedra.Mergulhe de cabeça numa obra que mostra sem margem para equívocos porque é que é possível sair ileso de tudo.Menos do amor.
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   Já está! Confesso que demorei algum tempo a decidir-me a comprar este livro. Quando o vi nas prateleiras a primeira vez e segunda e terceira, não me chamou minimamente a atenção. O título fez-me pensar que seria uma espécie de livro de auto-ajuda para essas coisas do amor e das relações, escrito por algum pseudo entendido na matéria. Nunca tinha ouvido falar de Pedro Chagas Freitas! Verdade! E então comecei a ver pela net uma espécie de invasão de citações deste livro e a coisa começou a interessar-me. Fiquei curiosa e fui ver de que se tratava o livro e finalmente percebi que não era de auto-ajuda mas sim de pequenos textos ou crónicas cheias de vida. A dada altura estava desejosa de o ler. 
   Não posso dizer que o devorei, simplesmente porque raramente devoro livros de crónicas. Devoro histórias. Este tipo de livros é para ir lendo ao sabor da inspiração e das necessidades, intercalado com um bom livro "de história". O medo de encontrar páginas carregadas de lamechice a roçar o piroso passou logo nas primeiras linhas e nunca apareceu. Pedro Chagas Freitas escreve sobre sentimentos de maneira humana e por isso real, sem lápis cor-de-rosa e pózinhos de contos de fadas. Põe vida nas páginas, nas letras, na ficção. É por isso que este livro vale a pena. Porque está carregado de vida. Da boa e da menos boa. De vida como as nossas, portanto. 

Olha. Olha. Olha.

Olha. Olha sempre. Olha muito. Olha com olhos de tocar, com olhos de sentir, com olhos de abraçar, de amar, de odiar até. Ma olha. Nunca deixes de olhar. É pelos olhos que a vida acontece. Mesmo que estejas com eles fechados, mesmo que eles não consigam ver. É pelos olhos que a vida acontece.

Olha o espaço inútil entre o sonho e a realidade. Preenche-o. Tenta preenchê-lo com tudo o que és. Há dificuldades grandes para ultrapassar, momentos em que te vai apetecer não olhar. É nesses momentos que tens de olhar mais ainda, é nesses momentos que tens de abrir mais os olhos. Para veres o que podes fazer para passares a ver outra coisa. O segredo do sucesso é ver bem. Perceber quem tens à frente, quem tens ao lado, quem tens atrás. Tens de ver bem para escolheres bem, para decidires bem. Nem que doa, nem que custe, nem que apeteça não olhar. Olha. Olha sempre. 
Olha o que tens. E é tanto o que tens. É sempre tanto o que tens. Olha o que te ama. Olha quem te quer bem, quem te procura para ser feliz. Olha ainda a rua cheia, milhares de pessoas que podes conquistar. Arrebata. Nunca queiras menos do que arrebatar, nunca dês menos do que tudo, nunca entres numa qualquer tarefa se não for para devorar, para consumir, para lamber, para saborear sem deixar um único pedaço intacto. Olha com olhos de viver. Olha com olhos de querer, com olhos de raptar, com olhos, mesmo, de roubar. Rouba o mundo que te está destinado e rouba mais ainda o mundo que não te está destinado. Olha tudo o que puderes, tudo o que souberes. Os mais felizes são os que vêem melhor, os que vêem primeiro e mais rápido – e sobretudo os que vêem do lugar certo. Tudo tem um lugar certo para ser visto. Procura o teu. Todos os olhares têm um lugar feliz. Olha pelo ângulo exacto. Podes até cansar-te, fraquejar porque fraquejar é de homem. Mas nunca deixes de olhar. 
Levo da vida o que olhei. E quando fecho os olhos é o que olhei que me ocupa, que me mantém entretido enquanto a dor magoa cada vez mais e a morte se aproxima. 

 

"Prometo falhar", Pedro Chagas Freitas

A aprender com os gatos

Dias cinzentos espalhados pela casa. Os gatos miam, com fome, e ensinam-me que tudo o que interessa é um prato cheio de comida. E depois viver. Há uma lição imensa a cada vez que um gato mia – mas há uma lição ainda mais imensa a cada vez que um gato, absolutamente despreocupado, se deita e passa horas a dormir, descansado pelo estômago cheio e pela felicidade de estar saciado. Quando estarei assim, saciado na plenitude? Quando serei capaz de fechar os olhos, despreocupado, e simplesmente dormir com a felicidade sem igual de um estômago cheio?

Pedro Chagas Freitas, "Prometo Falhar"

Não. Mil vezes não.

E o padre pergunta-me, agora mesmo, se quero amar-te na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, e eu só sei dizer que não. Não. Orgulhosamente não como há vinte anos não. Continuo a não te querer amar na saúde, a não te querer amar na doença. Não. Mil vezes não. Quero amar-te sem condições. Quero amar-te: eis tudo o que num casamento deveria ser dito.
O problema de Deus é nunca ter amado assim.
E o problema dos casamentos é ter palavras a mais. 
Pedro Chagas Freitas, "Prometo Falhar"

Não sou

Foto do ano passado, em Cabo Verde

Não sei a mulher que sou mas sei a mulher que não sou. Não sou a mulher que se esconde nos tachos, a mulher que se cala nas horas, que se entrega ao embuste da segurança, à fraude suportável de ver passar o tempo. Não. Não sou. Não sou a mulher do fado e das lágrimas, a mulher do enfado e das rotinas, dos sonhos que se arrastam pelas esquinas. Não. Não sou. Não sou a mulher de sorrisos quando existe a gargalhada, de aldeias quando existe o mundo. Não sou nem um milímetro menos do que aquilo que posso ser, e se um dia cair foi porque tentei saltar e não por que preferi aceitar.

Pedro Chagas Freitas, "Prometo Falhar"

Mas até lá...

Se estas conformado só te falta mesmo ser sepultado. (...)

(...) A conformação é a ausência de sonhos, a ausência de objectivos, a ausência de projectos, a ausência de vontades: a ausência de revolução. E há cada vez menos revolução no mundo. Se não há revolução podes ser tudo; mas feliz é que não. 

(...) Noventa e oito por cento das pessoas dizem «mas» sempre que falam; e os outros dois por cento são felizes. Por mais que tenham dificuldades (e têm tantas, tantas tantas), por mais que por vezes pareça que não vai dar para chegar lá (e são tantas vezes, tantas tantas). Por mais que tudo lhes diga «mas», há sempre pessoas que não se conformam.

O grande segredo para estares vivo é, por mais evidente que pareça, só morreres quando fores sepultado. 

Até lá, tens a obrigação se sonhar, de projectar, de acreditar. Até lá tens a obrigação de tentar.

Pedro Chagas Freitas, "Prometo Falhar"