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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

Porque os psicólogos também choram

E os psicólogos também são pessoas, com vida pessoal, com acontecimentos traumáticos, com crises de vida, umas esperadas e outras totalmente inesperadas. Também sofrem, também desesperam e também não encontram em si todas as respostas e todas as estratégias para lidar com os males do mundo e com os seus próprios males. Sofrem pela vida dos outros. Sofrem pela sua própria vida. E por vezes precisam que os ajudem. Os psicólogos também precisam de tempo para se restaurar, para colar os pedacinhos partidos, fazer terapia à alma e reaprender a amar, principalmente a gostarem mais de si próprios. E acreditem, essas experiências, tão humanas, só os tornarão mais entendedores do sofrimento alheio, não mais fracos ou mais incapazes.

excerto de um artigo publicado no Maria Capaz. Texto completo aqui.

   Tão, mas tão verdade. Se há por aqui alguém que também seja psicólogo/a concerteza que se identifica com estas palavras e se revê nelas. Nós, psicólogos, não somos super heróis da saúde mental; não somos exemplos da virtudes, comportamentos e de "always look to the bright side of life". Nós também sofremos, também temos as nossas maleitas, os nossos comportamentos e pensamentos questionáveis; nós tambem fraquejamos, também temos vontade de desistir e também temos momentos em que achamos que o mundo está para acabar. Somos humanos, importa não esquecer isso. Ok, somos humanos que foram "trabalhados" para ajudar os outros na exploração daquilo que de mais misterioso, complexo mas fascinante o ser humano tem, que é o nosso interior, mas somos humanos. Com tudo o que isso implica.

   Quantas vezes ser psicólogo não é, claramente, "olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço"??? Ser psicólogo é uma profissão como qualquer outra e, por isso, carece de uma certa predisposição para tal. Acredito que todos nós nascemos para algo, e uns quantos de nós nasceram para ser psicólogos, que é mais ou menos dizer que nascemos mais para o outro do que para nós. Provavelmente há uma espécie de "personalidade de psicólogo" - é verdade que somos experts em empatia, em ouvir o outro, em saber o que dizer no momento oportuno (só nós sabemos o que isto custa às vezes!), em pensar positivo e transmitir optimismo ao mundo, em acreditar que o ser humano tem capacidade para tudo (e realmente tem!), em resolver problemas (os dos outros, os nossos é melhor nem falar), em identificar e gerir emoções (as dos outros, não mexam com as nossas), em controlar emoções e em usar uma capa de serenidade e "está tudo bem, vai tudo correr bem". É verdade que somos tudo isto e muito mais. E até é verdade que, ao contrário de outras profissões, o psicólogo tem mais dificuldade em despir o fato de trabalho e ser só pessoa isolada da sua profissão, de tão entranhadas e intrínsecas que são as características pessoais de um psicólogo. Mas não pensem que somos inquebráveis. Sofremos tanto como vós. Erramos. Desesperamos. Choramos. Desistimos. Precisamos de ajuda (que nem sempre nos é fácil pedir). Quebramos. Somos gente como vós. E, como vós, nestes momentos, acreditamos sempre que somos capazes de dar a volta e sorrir. Como vós.

   Um abracinho reconfortante a todos os meus colegas psicólogos! Haja empatia!

 

Dos meus dias difíceis

   Nunca equacionei realizar o meu trabalho de psicóloga sem criar relações/ligações com as pessoas que encontro. Já aqui escrevi sobre isso noutra altura e nesta fase profissional em que me encontro percebo mais do que nunca que essa era, apesar de tudo e de todas as indicações para fazer precisamente o contrário, a única forma de fazer o meu trabalho bem feito. 

   O ser humano vive de relações e ligações. Muitas das pessoas junto das quais exerço as minhas funções não têm uma rede social ou de ligações forte. Muitas não têm sequer qualquer tipo de relações para além das que estabelecem com as pessoas que lhes prestam algum serviço. Durante este 4 anos e meio de trabalho na instituição enquanto psicóloga criei relações com muitas pessoas, especialmente idosos, que hoje sei que eram relações verdadeiras e fortes. Nesta altura de mudança de funções, interromper essas relações é um imperativo. Comunicar a quem se habitou a ver-me como um membro da família e alguém em quem podiam confiar o que muitas vezes não confiavam a mais ninguém que vão deixar de me ter tem sido duríssimo. Ver nos olhos dos que acompanho que já sentem a minha falta, que ficam decepcionados, tristes, alguns até mesmo chateados, é algo que difícil de gerir interiormente. Mas é também a prova de que estava a fazer o meu trabalho da melhor forma possível; que dei o melhor de mim, que dei muito de mim, mas que não me arrependo. Não podia ser de outra maneira. Não podia ser com outra intensidade. Estive lá para eles. Não sempre que eles precisavam, mas estive muitas vezes. E é por isso que é tristeza que eu vejo nos olhos deles por estes dias. Mas também é por isso que todos eles, sem excepção, me dão os parabéns, me desejam o melhor deste mundo e do outro em sucesso e felicidade e transmitem a sua alegria por me verem "subir de posto". 

   Criar relações também é isto. Também é ficarmos tristes e felizes ao mesmo tempo com uma mudança e transmitirmos isso ao outro. Ser psicóloga é isto. É dar uma parte de nós ao outro que precisa; é ficar com uma parte do outro em nós; é criar uma ligação que quando tem de levar um ponto-e-vírgula (porque eu não gosto de pontos finais, muito menos parágrafos) que nos deixa o coração e a alma duplamente apertadinhos: de tristeza pelos que deixamos e de alegria por levarmos cá dentro tanto de tantos, com a certeza de termos feito a diferença na vida de alguém. E a mim, é isso que me move. 

Birras de gente crescida...

Os adultos, por exemplo, sofrem diariamente injustiças e deparam-se com frustrações, tendo de as engolir porque as consequências de uma reacção destemperada podem ser desagradáveis. As crianças, talvez se possa dizer "felizmente", não pensam muito para lá do curto prazo, pelo que são mais espontâneas nas suas manifestações - os adultos não podem começar a berrar e a espernear no meio de uma reunião em que o chefe os deita abaixo, ou na fila da repartição, quando os funcionários os desprezam e ignoram os seus direitos. É por isso que, muitas vezes, fazem depois a birra, descarregando a tensão acumulada, em casa, perante a mulher, os idosos ou os filhos no que chega ao limite da "violência doméstica", uma relação de poder perverso que tem a sua origem muito antes dessa forma de explosão... quando toda a gente andava distraída, provavelmente na infância.

Mário Cordeiro, «O grande livro dos medos e das birras»

Histórias com gente dentro (e solidão, muita solidão)...

   Muito do meu trabalho (cerca de 90%) é feito literalmente no terreno, na rua, e passa por realizar visitas domiciliárias aos nossos idosos e às suas famílias, especialmente os casos de maior isolamento social. Atendendo à localização geográfica dos nossos centros sociais, começo a conhecer os bairros sociais do Porto quase tão bem como a minha casa. E apesar de tudo o que se diz estes bairros, o que há em excesso neles é, e isto é um facto, uma população envelhecida e só. Durante a minha manhã de visitas da passada sexta-feira, ia eu em passo apressado para tentar "cumprir a agenda" e fugir da chuva, e ouço um "menina". Facilmente encontrei a origem: uma idosa a acenar-me, ainda relativamente distante de mim, com duas cartas na mão e um "ajude-me aqui a ver para quem são estas cartas e de onde vêm". Fui ao seu encontro e o esclarecimento que pediu sobre as cartas foi apenas o rastilho para que a idosa me expusesse toda a sua vida. De solidão, claro! A D. Custódia (assim mesmo, nome completo, porque quero que a D. Custódia seja uma pessoa e não apenas uma letra), que nunca me tinha visto, desabafou comigo, ali na rua fria e molhada, as suas preocupações, as suas tristezas, a sua solidão, a sua velhice. Quando lhe expliquei quem era, o que fazia e onde trabalhava e que até podia ter uma solução para atenuar a sua solidão, a D. Custódia deu a habitual resposta "para um centro de dia? Mas eu não quero deixar a minha casinha". E de imediato me tentou empurrar para a sua casa e me convidou para entrar, o que eu não fiz com muito custo, mas não me pareceu uma atitude correcta. Na hora da despedida, a D. Custódia abriu os braços e saiu-se com um "oh minha rica menina, dê-me um beijinho e um abraço". E abraçou-me. Com força, com muita força. Com a força dos que não estão habituados a ter os abraços que precisam. Ainda houve tempo para um "se anda a visitar os velhos que vivem sozinhos, quando quiser venha a minha casa. Eu ia gostar tanto." 

   Eu também ia gostar tanto de visitar a D. Custódia. Mas sobretudo, ia gostar de ver e viver num mundo onde estas situações não seriam tão frequentes. Até lá, vou continuando a fazer a minha parte e a reduzir a solidão dos meus. 

Today, this made my day!

B. (10 anos), hoje, para mim: "As minhas princesas favoritas são, em primeira a Ariel, em segundo a Rapunzel e em terceiro... és tu".

This made my day!

Tão bom quando a nossa profissão nos permite ter o melhor de dois mundos tão distantes, mas afinal tão semelhantes: o mundo daqueles que estão a começar a vida e o daqueles que estão na contagem final...

Histórias com gente dentro...

   Quando ouvimos da boca de alguém com mais de 70 anos "Eu nunca fui feliz" e, conhecendo a história de vida deste alguém, sabemos que estas palavras têm tanto de duro quanto de verdadeiras, ficamos a pensar que às vezes a vida é a coisa mais complicada de ser vivida. 

   E que, na vida, nem tudo depende de nós, porque a vida pode ser traiçoeira, apesar da nossa garra e da nossa vontade de viver e lutar e viver e lutar e viver... e injusta, sobretudo injusta.

   Uma vida que nunca foi feliz não é uma vida que valha a pena ser vivida. Não é a vida que escolhemos viver. Mas foi a vida que nos foi dada a viver. Ou a sobreviver. A aguentar. E agora, aos 70 e tal anos, com uma vida que nunca foi vida  presa a uma cama há 14 anos, ter a certeza que nunca se foi feliz é a pior coisa que podemos levar desta vida, que nunca o chegou a ser. 

Pôr o dedo na ferida...e não o tirar enquanto não sarar

   Ser psicólogo também é isto: descobrir onde está ferida, descobrir porque sangra, pôr lá o dedo e escarafunchar muito bem até a pessoa saber viver com essa ferida curada. Mas isso não é fazer sofrer o outro? Não. É trazê-lo para a realidade porque o queremos ajudar. É dizer-lhe "eu sei que dói, e ainda vai doer mais, mas o caminho é por aqui e, juntos, vamos fazer o penso desta ferida que dói tanto".

   Às vezes não é fácil chegar lá, à ferida mesmo. Tem uma crosta por cima que a encobre mas que não a sarou. Às vezes é preciso andar ali à volta, a explorar, a descobrir, e quando menos esperamos, click, as lágrimas, a dor, o sofrimento e a certeza de que temos de continuar exactamente por aquele caminho.

   O melhor de tudo? Sentir e saber que, no final e apesar de todo o sofrimento, é possível sarar as feridas dos outros.

Histórias com gente dentro

   De vez em quando encontro pessoas assim: resistentes às minhas tentativas de ajuda, com o discurso do "eu não preciso", quando sabemos perfeitamente que precisam e muito e do "já não nada que possa fazer por mim". Nestes casos limito-me a respeitar sem nunca me fazer esquecer, ou seja, de longe a longe vou passando lá por casa "só para saber como está e lhe dizer que, se precisar, eu estou cá".

   Nestes casos e quase sempre de repente dá-se o clic que os faz dizer "gostava de poder falar com a Dra..." e ganho aqui amigos de uma vida, que é como quem diz, casos em que as visitas terminam sempre com um "e agora, quando volta?".

   A Sra. N. é um destes casos. Ou era... Connosco há vários anos, muitos mais do que os que eu tenho na instituição, passou de cuidadora exímia de um marido em fase terminal de doença cancerosa a cliente há cerca de 2 anos, com a morte do marido. Dona de uma personalidade muito própria e peculiar e de ideias nem sempre facéis de gerir, a Sra. N. nunca aceitou a minha ajuda, apesar de serem claríssimos os sinais de um enorme desgaste emocional causado pela doença do marido e depois pela sua morte e acima de tudo por uma história de vida complicada de quem teve tudo e todos e hoje sobrevive com tostões e caridade, numa solidão total que encara como humilhação e castigo que não compreende.

   Sem nada o fazer prever, na passada semana pediu a uma das nossas colaboradores para marcar uma visita minha. Caiu-me o queixo. A mim e a toda a equipa. Ontem lá fui, conhecê-la, percebê-la e ouvi-la. Principalmente ouvi-la, porque é só disto tudo que ela precisa, de alguém que a ouça fechada numa casa despida de calor humano, alegria e afetos. O tempo passou a voar, a conversa foi interessantíssima, compatível com a pessoa que acredito que a Sra. N. é e já muito perto do final compreendi o que a fez mudar de ideias e chamar-me. Completamente desacreditada da vida e das pessoas, a Sra. N. leu o meu texto "A arte de cuidar" publicado na última revista instituição e reviu-se naquelas palavras dedicadas a todos os cuidadores. Segundo ela, viu ali compreensão e dedicação de alguém que se preocupa com quem cuida e não apenas com quem está doente. E com aquelas palavras, voltou a acreditar um bocadinho nas pessoas e na humanização...ou pelo menos, começou a acreditar um bocadinho em mim e como ela própria disse "ao ler isto eu percebi que tinha aqui alguém que me pode compreender, que me vai ouvir e que me vai ajudar".

   Para quem, como eu, acredita nas pessoas e na capacidade de mudarmos vidas simplesmente estando lá e ouvindo, isto foi dos maiores elogios possíveis. E sim, a visita terminou com a marcação do nosso próximo encontro.

This made my day

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 Qual a característica que mais aprecias em ti? 

   É uma pergunta que todos nós poderemos um dia escutar. Sem pensar muito, facilmente diria que a minha forma positiva de ver as coisas e a vida, sem negativismos e pessimismos extremos que nos inundam em sofrimento e mágoa, mas com os pés sempre muito bem assentes na terra. 

  Mas agora, e depois de alguns anos de experiência profissional enquanto psicóloga, a minha resposta mudou e descobri isto hoje depois de uma tarde de consultas relativamente pesadas. É a minha necessidade de arrancar um sorriso aos outros, seja em que situação for, que mais de agrada em mim. Esta vontade de, mesmo com lágrimas nos olhos, ver o outro sorrir. É isto que me realiza enquanto psicóloga. Muito mais que saber que estou a ajudar aquela pessoa ou que lhe poderei estar a conduzir a vida para um caminho mais simples. Muito mais que ouvi-la. Muito mais que me dizerem "Obrigada doutora". Muito mais que qualquer coisa. Ver um sorriso na cara de uma pessoa que me pediu ajuda, seja qual for a sua idade, é a melhor recompensa que eu poderia ter. E é para isto que eu me esforço todos os dia, a cada consulta: por roubar um sorriso sincero. Quase sempre consigo. E é isto, isto mesmo, que é tanto, aquele momento, aquele sorriso partilhado, que me faz sentir orgulhosa pelo meu trabalho e cheia por dentro, apesar de todo o sofrimento humano com que lido. É isto que faz aparecer por cima da minha cabeça aquele balãozinho invisível que diz "this made my day". 

   

Histórias com gente dentro...

   Hoje, pela primeira vez em consulta, aquele momento em que percebemos claramente que temos de usar todas as nossas barreiras emocionais e profissionais para não nos envolvermos mais naquela história, naquele momento, naquela dor, se queremos manter a postura de "eu não vou chorar com os meus pacientes". 

  Explorar o abuso sexual de uma jovem de 18 anos com a própria é duro, muito duro. Especialmente quando começamos a criar uma relação de proximidade terapêutica tão positiva, que a pessoa já confia em nós apenas para chorar e chorar e chorar...

   O melhor e o pior da minha profissão!