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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

Histórias com gente dentro (e solidão, muita solidão)...

   Muito do meu trabalho (cerca de 90%) é feito literalmente no terreno, na rua, e passa por realizar visitas domiciliárias aos nossos idosos e às suas famílias, especialmente os casos de maior isolamento social. Atendendo à localização geográfica dos nossos centros sociais, começo a conhecer os bairros sociais do Porto quase tão bem como a minha casa. E apesar de tudo o que se diz estes bairros, o que há em excesso neles é, e isto é um facto, uma população envelhecida e só. Durante a minha manhã de visitas da passada sexta-feira, ia eu em passo apressado para tentar "cumprir a agenda" e fugir da chuva, e ouço um "menina". Facilmente encontrei a origem: uma idosa a acenar-me, ainda relativamente distante de mim, com duas cartas na mão e um "ajude-me aqui a ver para quem são estas cartas e de onde vêm". Fui ao seu encontro e o esclarecimento que pediu sobre as cartas foi apenas o rastilho para que a idosa me expusesse toda a sua vida. De solidão, claro! A D. Custódia (assim mesmo, nome completo, porque quero que a D. Custódia seja uma pessoa e não apenas uma letra), que nunca me tinha visto, desabafou comigo, ali na rua fria e molhada, as suas preocupações, as suas tristezas, a sua solidão, a sua velhice. Quando lhe expliquei quem era, o que fazia e onde trabalhava e que até podia ter uma solução para atenuar a sua solidão, a D. Custódia deu a habitual resposta "para um centro de dia? Mas eu não quero deixar a minha casinha". E de imediato me tentou empurrar para a sua casa e me convidou para entrar, o que eu não fiz com muito custo, mas não me pareceu uma atitude correcta. Na hora da despedida, a D. Custódia abriu os braços e saiu-se com um "oh minha rica menina, dê-me um beijinho e um abraço". E abraçou-me. Com força, com muita força. Com a força dos que não estão habituados a ter os abraços que precisam. Ainda houve tempo para um "se anda a visitar os velhos que vivem sozinhos, quando quiser venha a minha casa. Eu ia gostar tanto." 

   Eu também ia gostar tanto de visitar a D. Custódia. Mas sobretudo, ia gostar de ver e viver num mundo onde estas situações não seriam tão frequentes. Até lá, vou continuando a fazer a minha parte e a reduzir a solidão dos meus. 

Histórias com gente dentro

   E se, no vosso funeral, estivessem apenas 3 pessoas presentes, nenhuma delas familiares, mesmo ainda os existindo vivos? 

   Não gosto de funerais. Não gosto de olhar corpos mortos e expostos. Não gosto de os ver não respirarem. Mas o que verdadeiramente me impressionou, e doeu, neste funeral, foi a ausência de gente capaz de sentir a perda do Sr. M., principalmente quando sei que aquela morte àquelas três pessoas significava pouco mais que a perda de um vizinho. 

  Os nossos idosos vivem sós. Com toda a dor que isso carrega consigo. Mas morrermos sós, sem ninguém que nos chore, é o limite do abandono. É não ter dignidade humana nem mesmo na hora da partida. 

   Pensem nisto. E nos vossos. 

A solidão de quem cuida

Tememos a solidão porque esta nos faz sentir vulneráveis, a não ser que sejamos pessoas com uma grande capacidade resolutiva interior, com uma grande capacidade para sentir a unidade que integramos. Porque motivo nos faz a solidão sofrer? Porque o ser humano não nasceu para estar sozinho. O ser humano é em função das suas relações. A sua existência não é uma existência solitária, pelo que, para a cuidadora de alguém que padece de Alzheimer, imaginar o futuro no qual, possivelmente, possa vir a ficar sozinha, sem a possibilidade de partilhar a sua vida com alguém e de continuar a relacionar-se com essa pessoa que ama, provoca inevitavelmente medo. A cuidadora vive dia-a-dia o luto vivo da doença, e a solidão, para ela, não é um mero conceito. É uma realidade próxima que se manifesta a cada momento no seu companheiro, pai ou mãe, cujas capacidades vitais deixaram de ser as de antes, que se foram diluindo com o tempo.

"Viver com Alzheimer", Dr. José Luis Molinuevo

Histórias com gente dentro (ou das coisas que eu não percebo)

   As desculpas que os filhos arranjam para não estarem presentes na vida dos pais e as desculpas que os pais arranjam para a ausência dos filhos.   

  Ou chamando as coisas pelos nomes justos, as desculpas para o desinteresse total de um ser humano por ouro que, vai-se a saber, até deveriam ser as pessoas mais importantes das suas vidas. 

   A solidão dos idosos já foi tema mais que abordado por aqui. Perturba-me, é certo, mas os dias ensinaram-me a lidar com isto. O que parra mim não é tão fácil digerir é o abandono dos nossos idosos por aqueles filhos que nunca estão mas que aparecem de vez em quando, num momento de crise ou qunado pressionados por alguma entidade, para nos dizerem coisas como "eu só não faço mais porque eles (pais) não deixam...não vale a pena, não dá,  têm um feitio que a doutora nem imagina". 

   Efectivamente não imagino. Mas o que eu não preciso de imaginar são as condições desumanas em que esses maus feitios vivem, porque essas são em reais e estão ali à minha frente. E não me peçam para compreender que é dos feitios, que são pessoas cheias de manias, que são as vidas muito ocupadas, que é o trabalho e a saúde e o mais que lhes valha. É o desinteresse. Ponto. É sermos filhos e esquecermos que o somos, esquecermos que, algures, o nosso pai e/ou a nossa mãe estão abandonados e entregues a si próprios, a viverem sabe-se lá como e à custa de quê. Perante estes filhos, que não o são verdadeiramente,  eu tenho sempre de engulir a mesma pergunta/afirmação/indignação: "desculpe lá, mas eles não são seus pais?". Não deveria isto, que já é tudo, ser suficiente para deslocar montanhas? 

   E como se não bastasse, temos ainda os próprios idosos, os pais, a desculparem estas ausências com as mesmas desculpas usadas pelos filhos. E aqui, mais uma vez, lá tenho eu de engolir um "desculpe lá,  mas vocês não são pais?". Quantas vezes aqueles pais anularam as suas vidas para estarem presentes na vida dos filhos, para mudarem uma fralda, para passarem uma noite em branco à espera que a febre baixasse, para terem o que lhes dar de comer e vestir... quanto sacrifício não terão eles feito para agora os filhos serem essas pessoas cheias de afazares e cargos importantes que nem lhes deixam tempo para visitar quem lhes deu o mundo? 

Histórias com gente dentro (ou o sermos tudo na vida de alguém)

   Se há coisa que o nosso projecto de voluntariado da instituição veio mostrar é que a solidão é provavelmente a maior doença dos nossos tempos e é uma doença que afecta um número assustador de pessoas que não têm ninguém e que se estende até nós que, diariamente, lidamos com a solidão dos outros,  que passa a ser também um bocadinho nossa. 

   Quando temos de dizer coisas como "coma a sopa toda, porque agora só cá vimos dar-lhe de comer amanhã" ou "deixe pôr a fralda direitinha porque est tem de aguentar até amanhã" ou ainda "agora não abra a porta a ninguém,  porque ja cá não vem mais ninguém que a senhora conheça", estamos, ainda que sem querer, a arrancar pedacinhos da nossa alma e a relembrar a alguém que está neste mundo invariavelmente só.  Fazemo-lo inconscientemente,  sim, mas estamos a materializar em palavras um sofrimento incomensurável,  desumano e nunca completamente perceptível para nós que, egoista mas também humanamente, queremos "despachar o serviço a horas" para podermos finalmente regressar aos nossos lares ou onde quer que seja, pois sabemos que, seja a que hora for, temos alguém à nossa espera. 

   Nós temos alguém à nossa espera. Eles esperam por nós a cada minuto que passa, pois sabem que aquela porta só se abre 3 ou 4 vezes ao dia, se tanto, para nos deixar entrar e, ainda que com tempo contado, somos nós e apenas nós que lhes preenchemos os dias. E são eles, com a sua solidão,  que nos preenchem o coração e alma com aquelas coisas da realidade que nos fazem crescer e nos tornam...humanos...

"Her" e a solidão

 

   Solidão. É disto que fala este filme. É isto que é este filme.

   Numa época em que vivemos cada vez mais conectados virtualmente mas totalmente desconectados das relações humanas reais, este é um filme que, passado num futuro ainda mais virtual que o nosso presente (está visto que isto tem tendência para piorar), nos mostra que o ser humano vai sempre procurar incansavelmente estabelecer relações com alguém, chegando mesmo a contentar-se com relações virtuais, não-humanas diria mesmo. Relações sem corpo, sem toque, sem cheiro, sem olhos nos olhos, mas com uma voz que nos diz tudo aquilo que nós queremos (ou precisamos de) ouvir. Neste mundo completamente virtual que é o filme e para o qual caminhamos a passos largos e assustadores, perdeu-se a capacidade de estar com o outro real. Tudo está à distância de um chamamento dirigido a uma máquina, o mundo parece uma realidade fácil e as relações assumem uma nova dimensão de "operating system". Relamente, tudo parece fácil. Mas a solidão é tanta, que chega a doer pensar que um dia nós, que hoje somos espectadores, podemos ser as personagens principais de uma realidade que facilmente deixa de ser real de tão virtual que é.

   Solidão. É isso que está neste filme.

   E é isto que vai estar nestas vidas quando deixarmos de abraçar as pessoas para passarmos a abraçar vozes.

 

Nota final: ainda assim, tenho de dizer que este filme não me encheu as medidas...

"Sozinho-me"

   Quando os meus dias são muito cheios de vidas e histórias, é nesses dias que mais preciso de me "sozinhar", que é como quem diz de me isolar de tudo e de todos e passar uns belos momentos comigo mesma e com o silêncio e o vazio que também pode ser o mundo e a vida.
   Há dias em que carregar tantas vidas cá dentro não é fácil. Há dias em que o sofrimento dos outros é tanto que invade perigosamente a minha alma. E há dias em que simplesmente nos apetece nada para além de nós próprios, quando às vezes já nem com nós próprios podemos.
   Há dias assim, pesados, intermináveis porque continuam nos sonhos e acordam connosco no dia seguinte.
   Há dias em que me "sozinho" para me poder encontrar e estar pronta para mais um dia.

Histórias com gente dentro

 

   A frieza, distanciamento e ausência de sentimentos com que algumas famílias (que nem merecem esse nome) tratam os seus (que acabam por ser mais nossos) idosos é das coisas que mais me revolta no meu trabalho diário, embora já não seja a que mais me perturba ou choca. Quase diariamente me deparo com exemplos vergonhosos que me fazem questionar até onde o ser humano é capaz de ir na sua indeferença. A solidão em que muitos idosos são deixados é uma das coisas que mais confusão me faz, por um lado porque me põe a pensar no meu dia de amanhã e na possibilidade de também eu acabar só e depois porque sei que é talvez aquilo que mais sofrimento causa a um idoso e que, isso sim, os mata aos poucos. Quando a solidão roça os limites do abandono (porque há alguma que é quase obrigatória, quando não existe mesmo retaguarda familiar), esse morrer aos poucos acaba por passar também para nós.

   Esta semana passei por uma situação que posso quase rotular de experiência sobrenatural, pois nunca pensei que neste mundo tal fosse capaz de acontecer. Ao chegarmos a um dos nossos idosos, acamado há alguns anos, para lhe administrarmos o almoço, encontramos o senhor morto. Depois do choque inicial e perfeitamente natural, toca a fazer o mais difícil: avisar a família. Quando pegamos num telefone para dizer a uma filha: "lamento imenso estar-lhe a dar esta notícia, mas o seu pai faleceu", esperamos todas as reações, menos esta "ah, mas eu agora não posso ir aí, e o meu irmão também está a trabalhar só consegue passar aí em casa lá para meio da tarde; tratem vocês do assunto".

   Onde fica a emoção, a dor de ter perdido um pai, que morreu sozinho numa casa abandonada de vida e afectos?

   Onde fica o nosso coração, o nosso lado humano, os nossos sentimentos?

   São coisas que ainda me deixam sem palavras e assustada relativamente a esta estranha forma de vida que a humanidade do nosso tempo demonstra.

Independent but not alone

Sarah Jessica Parker e Chris Noth

   Quando há uns anos atrás me perguntavam (ou eu perguntava a mim mesma) como imaginava a minha vida daqui a x anos, a resposta, invariavelmente, era uma só: vejo-me a exercer psicologia, a ser bem sucedida, muito viajada e a morar sozinha. A característica "sozinha" acompanhou o meu discurso e o meu pensamento durante bastante tempo. Hoje a minha postura, e a minha resposta, caso me perguntassem o mesmo, ou perguntasse a mim mesma,  mudou. A resposta mudou, porque eu mudei. Hoje não me consigo imaginar sozinha. De facto, a solidão até me assusta.

  Sou uma pessoa muito independente. Demasiado até. Talvez por ser filha única e ter "crescido sozinha". Detesto que se metam na minha vida, não suporto que me tentem controlar, e sempre que peço a opinião a terceiros é única e exclusivamente para tentar ver confirmadas as minhas decisões, as minhas opiniões, as minhas ideias. Todos os dias preciso dos meus momentos "alone with me, myself and I", seja para ler os meus livros ou as minhas revistas de moda e sonhar com aqueles sapatos, com aquela carteira, com aquele vestido, para escrever, para navegar na internet, para ouvir música, para ver televisão ou um filme, para practicar yôga ou simplesmente para não fazer nada. Prezo a minha liberdade acima de tudo. Anseio pela minha independência mais do que tudo.

   Mas solidão? Isso (já) não é para mim. Como poderia ser, se sempre que estou muitas horas sozinha em casa acabo sempre por ligar a televisão (ainda que em mute), por pôr música a tocar? Não quero solidão. Quero momentos de sossego. Momentos meus. Mas não solidão. Não quero chegar a casa e não ter ninguém à minha espera.

  Talvez o que eu queira mesmo seja ter os meus momentos de solidão, sabendo que quando eles terminarem estará alguém à minha espera.

 

   No fundo, tudo mudou quando me apaixonei. Pelas pessoas, pela família e pelo amor de uma vida a dois