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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

As ditas demonstrações de poder

   A polícia de intervenção tem andado pelo bairro do Aleixo, no Porto. Depois de rusgas, apreensões e muita pancadaria desnecessária, hoje estavam a fazer aquilo que os próprios denominam como "demonstração de poder". Nas palavras dos mesmos: "A operação teve dois objectivos: identificar e deter os responsáveis pelo apedrejamento e combater o tráfico de droga no bairro. Foi uma forma de demonstrarmos que não permitimos que seja posta em causa a nossa autoridade".

  Ora para quem lá pára e não se limita a passar e olhar para aquela gente com desprezo ou pena, o que vemos é apenas e só (para além da cena hollywoodesca, de polícias completamente equipados a bater com os seus orgulhosos cacetetes na palma da mão), medo, medo e medo, revolta, miséria e uma grande, grande ressaca que os deixa completamente de rastos, mas que mesmo assim vivem com uma calma e resignação que até assusta. Rodeiam a carrinha unicamente para terem o que comer e para encontrarem uma palavra de apoio e um ombro de desabafo.

   Não desvalorizando o trabalho das forças polícias e compreendendo a sua importância, não consigo não me pôr no lugar daqueles consumidores que enchem os bolsos ao "peixe grande" da zona e que acabam sempre por ser as maiores vítimas. Ninguém os mandou consumir, ok concordo. Foi uma fraqueza, uma cobardia, um acto irresponsável, uma loucura, um erro, o que quer que lhe queiram chamar. Mas uma vez lá dentro, nenhum de nós calcula o quão difícil é sair daquele mundo, com aquelas histórias de vida, com aquela estrutura psicológica, com aquela ausência de tudo o que nos dá vida.

   Cria-se um elo e, a partir daí, não conseguimos não sentir por eles e com eles. Para além do vício.

  

Dura vida

 

   Quando vemos um traficante bater num consumidor à nossa frente, pegar nas suas coisas (que são tudo o que lhe resta), atirá-las para um buraco repleto de lixo, enquanto diz "fora daqui, não te quero aqui" (só porque não lhe comprou o "produto" a ele) e no olhar da vítima vemos apenas e só a humilhação, o vazio imenso e a tristeza de uma vida nada fácil, enquanto nos fala a medo, com a voz tremida, sumida, ausente e nos diz "oh, estragou-me a fruta toda que eu tinha para comer", sentimo-nos pequeninos e o nosso coração fica apertado, apertadinho, durante horas, horas, horas...horas...horas...pelo seu olhar, pela sua voz, pela sua postura, pela humilhação a que foi sujeito, pela reacção que (não teve), pelo ser humano desfeito e compeltamente perdido que sobrevivia à minha frente...

   A vontade? Espetar o agressor com muitas, muitas agulinhas da cabecinha até aos pés e atirá-lo ao buraco (confesso que em off, na carrinha, depois das portas fechadas e trancadas, o dito cujo foi fortemente insultado e amaldiçoado por nós, lindas meninas bem comportadas).

 

   E porque uma pancadaria nunca vem só ainda houve espaço para nova queixa, num outro bairro, cujo discurso chegou a roçar o cómico: "Oh Dra, o Pescador deu-me um estalo só porque eu não lhe respondi a uma pergunta. Mas eu sou obrigado a responder a tudo o que ele me pergunta? Ele não gosta de mim, que eu sei, é porque eu não paro ali muito com eles, mas ele vai ver, que eu tenho aí um amigo que é grande, não é assim pequenino como eu, e eu vou pedir-lhe pra lhe dar uma coça. Eu é que não quero estar a incomodar-me. Dá-me mais suminho, dá-me?"

 

Apesar de tudo, começo a gostar verdadeiramente deste trabalho e de entrar na vida daqueles que já não a têm.