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1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

1001 pequenos nadas...

...que são tudo, ou apenas esboços da essência de uma vida entre as gentes e as coisas, captados pelo olhar e pela mente livre, curiosa e contemplativa. Por tudo isto e tudo o resto: É PROIBIDA A ENTRADA A QUEM NÃO ANDAR ESPANTADO DE EXISTIR

"De pequenino se volta a menino"

Contextualizando: o Sr. J. tem mais de 80 anos e um comportamento apelativo vincado há imensos anos. Deveria frequentar o centro de dia todos os dias, mas nas fases mais apelativas, especialmente dirigido aos familiares, não o faz durante uma carrada de dias seguidos, ficando por casa "a morrer aos poucos", num estado de total prostração e a fazer asneiras atrás de asneiras, principalmente no que ao controlo do seu xixizito diz respeito. Nestas alturas, é necessário ser dura com ele, ameaçá-lo com lares e internamentos e ralhar muito. Normalmente no dia seguinte está no centro de dia, como se nada se tivesse passado. 

Depois de mais de 2 semanas em casa, uma carrada de asneiras e uma visita ameaçadora minha na passada 6ª feira, o Sr. J. voltou na 2ª feira ao centro de dia. Ontem apareceu-me à porta do gabinete ao final do dia...

- Que se passa, Sr. J.?

- Sra. Dra., eu tenho levado esta semana seguidinha direitinho... portei-me bem na 2ª, portei-me bem na 3ª, portei-me bem na 4ª, portei-me bem na 5ª...

- É verdade! E então? (neste momento só um pensamento na minha cabeça, "vai-me pedir para amanhã ficar em casa!")

- E então eu agora fui à casa-de-banho e fiz um bocadinho de xixi por fora... e acho que sujei as calças...só um bocadinho... posso vir na mesma para o centro amanhã? Ainda por cima é dia de rezarmos o terço...e foi só um bocadinho... não conte a ninguém!

(Ok! O meu coração estalou!)

- J., foi um acidente, não foi? Se foi foi um acidente, acontece, ninguém lhe vai ralhar. E amanhã quero-o cá assim bonito de cor-de-rosa!

- Gostas de me ver assim? (e um grande sorriso de menino!). 

- Muito! Está um rapaz todo jeitoso! E agora a quem é que vamos contar este segredo para lhe podermos dar banho? Fica só entre o Sr., eu e mais quem? 

 

E ele escolheu quem com queria partilhar o nosso segredo. E hoje lá estava no centro de dia. 

É nisto que nos tornamos. Velhinhos envergonhados por termos feito umas pinguinhas de xixi nas calças. Tal como as crianças! 

Salário emocional

  Não vem espelhado no recibo ao final do mês e pode assumir as mais diversas formas, mas este tipo de "pagamento" poderá bem ser aquele que mais diferença faz na saúde do nosso local de trabalho e no bem estar dos colaboradores. Desconhecia a expressão, mas rendi-me a ela à primeira leitura, talvez porque me tenha identificado imediatamente com ela. 

   Há coisa que não têm preço na vida: gestos, palavras, sorrisos, toques, palavras... No nosso emprego também! Se o ordenado ao final do mês na nossa conta sabe bem, são os pequenos gestos diários que fazem de cada colaborador aquilo que ele é e aquilo que ele ainda poderá ser. O salário emocional não se reflete em números, mas reflete-se com toda a certeza em produtividade, motivação e satisfação com o trabalho diário. Mais do que o verdadeiro salário, é este salário emocional que nos arranca da cama todos os dias para irmos trabalhar e é este que trazemos diariamente para casa quando saimos com aquela magnífica sensação de "missão cumprida". 

   O desafio da coordenação, de serviços, espaços e equipas, foi provavelmente dos maiores desafios que recebi até hoje e aquele que mais me surpreendeu pela forma como me foi cativando dia após dia. Se chefiar pessoas inicialmente me causou a maior das confusões, atualmente é das coisas que mais prazer me dá. E a justificação é simples: eu aprendi, com as minhas equipas, que o segredo não é saber mandar e controlar e impôr. O segredo é ir conquistando o nosso lugar de topo indo lado a lado com a equipa. O segredo é estar lá, para chefiar e para brincar, para trabalhar e para a vida pessoal. O segredo é pedir justificando e explicando em vez de mandar. O segredo é dedicar tempoa a conhecer cada um dos nossos colaboradores, até chegarmos aquele ponto em que conseguimos conviver pacificamente e espontaneamente com todos eles, sem a pressão do "ela é a minha chefe". O segredo é não esquecer que todos são pessoas como nós, que todos têm os seus dias, as suas qualidades e os seus defeitos e que todos, todos, gostam de ser valorizados, ouvidos, estimados e que não podemos esperar que se entreguem a nós (ou ao trabalho) sem retorno. E o melhor retorno é, sem sombra de dúvida, o retorno diário, o retorno das pequenas coisas, o salário emocional. 

   Se são a emoções que nos guiam, se são elas que nos alimentam, que nos constroem e nos destroem, porquê ignorá-las no local de trabalho? Valorizem-nas! E terão colaboradores que não só se valorizam, como saberão valorizar todos os esforços de quem chefia! 

Valoriza quanto vales. Sem pudores.

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Vivemos num mundo de excessiva valorização do que é material. Não é novidade nenhuma isto; o dinheiro comando o mundo moderno e, por isso, ter tornou-se muito mais importante que ser. Mas também hoje, mais do que nunca, assistimos a fortes incentivos à valorização do "não material". O desprender dos bens materias está na moda, os retiros espirituais em Bali estão na moda (e custam balúrdios, by the way, só para contrabalanças as coisas), o yoga e toda a sua filosofia de bem com a vida está na moda (nada contra, o yoga é provavelmente dos hábitos passados que abandonei de que mais falta sinto!), a meditação está na moda, vender a roupa que já não usamos nas redes sociais está na moda... ou seja, há uma forte corrente no sentido de nos ensinar a viver com menos, mas a viver mais.

   Eu gosto de ter. Ou de poder ter aquilo que gostaria de ter. Não sou excessivamente materialista, sou relativamente poupada, não sonho com marcas ou smartphones de última geração, mas gosto de ter as minhas coisas, os meus caprichos. Gosto de poder comprar uma peça de roupa que gosto, gosto de poder esbanjar/investir pequenas fortunas em livros e na minha alimentação "diferente", gosto de ir ali ao site da Ryanair e marcar uma viagem de um dia para o outro (posso fazer uma pausa para?). Gosto. Ponto. E não me envergonho. Felizmente a vida e a idade (maldita idade que tem as costas largas para tudo!) têm me ensinado a, não me armando em fundamentalista, valorizar muitos mais momentos do que coisas, afinal, são os momentos que vivemos, sejam eles bons ou menos bons, que nos tornam pessoa e que fazem esta passagem por cá valer realmente a pena.  

   Ora e este discurso toda sem nada de novo para quê? Por isto: hoje fui informada pela chefia que, como forma de reconhecimento pelo meu bom trabalho e pela forma positiva como agarrei o desafio que me foi lançado de assumir funções de coordenação há mais de 2 anos, o meu ordenado será aumentado (calma, ainda não vou poder fazer um retiro espiritual em Bali). 

   Todos nós gostamos de ser reconhecidos pelo esforço e dedicação diárias nas nossas funções, certo? Eu costumo dizer que o meu maior reconhecimento vem do feedback que vou recebendo dos meus clientes, idosos e crianças, e do bom ambiente de trabalho que consigo ter com toda a equipa que coordeno. E de fato tem de ser mesmo isto a alimentar-nos a alma diariamente. Mas o reconhecimento que vem de quem está a cima de nós também é igualmente importante. Fundamental até! Felizmente posso dizer que tenho tido diversos momentos em que fui superiormente reconhecida pelo meu trabalho, alguns deles públicos até, o que alimenta ainda mais a nossa auto-estima. Não tenho vergonha de o dizer, nem o faço com sentido de gabarolas. Eu faço o meu trabalho o melhor que posso e sei. Nem todos os dias são iguais, nem todos os dias estamos com a mesma capacidade, nem todos os dias sou o exemplo do bom profissional. Mas todos os dias sou o meu melhor. Ter um idoso a dizer "toma lá um beijinho que tu és um amor" é bom. Ter um familiar de um idoso dizer "obrigada por tudo o que fizeram pelo meu pai" é bom. Ter uma mãe no final do ano letivo a dizer "obrigada pela forma como sempre educaram o meu filho" é bom. Ter uma equipa com quem almoço diariamente e com quem partilho momentos de verdadeira galhofa mas que também se sente à vontade para desabafar comigo problemas pessoais é bom. Mas ouvir do presidente do conselho de administração dizer "os bons resultados deste centro devem-se ao excelente trabalho de quem dirige diariamente esta equipa e este serviço" ou "você agarrou os desafios que lhe lançamos e superou as expetativas de todo o conselho de administração" também é muito bom. E ser aumentada como forma de reconhecimento por tudo isto é bom. É muito bom! Hoje eu estou feliz por isso. Sem vergonhas. Sem falsas modéstias.

   Se é isto que me vai arrancar da cama amanhã para mais um dia de trabalho? Também é! Afinal não podemos esquecer que cada gesto de reconhecimento, material ou humano, tem acima de tudo de ser um elemento motivador e o combustível que nos faz querer ser ainda mais e melhor. Fazer aquilo que gostamos e chegar ao final do dia com aquela sensação deliciosa de missão cumprida tem de ser aquilo que nos move, mas, venha quem vier, o dinheiro também nos move. Tudo nesta vida tem um valor. Tudo. Cada um de nós também o tem. E sabe muito bem saber que a partir de 1 de Setembro o meu valor vai ser superior ao de hoje! 

(atendendo à temática, achei que uma foto tirada à porta do Casino de Tróia, encaixava bem aqui...)

 

Press Play

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   Amanhã arranca Agosto e eu regresso ao trabalho.

   Pela primeira vez desde que comecei a trabalhar, já lá vão uns anitos, marquei 12 dias de férias seguidos (18 se contarmos com os fins-de-semana) e que bem que me soube. Mais do que nunca estava a precisar disto. Não do descanso físico, que esse eu até dispenso e nem sei lidar com o "estar parada", mas do procurar desligar do trabalho e de tudo o que lhe está associado. Este foi provavelmente o ano em que mais ansiosamente contei os minutinhos que faltavam para o período de "férias grandes" chegar. Os últimos dois, dois meses e meios foram estupidamente desgastantes, psicologica e mentalmente falando, sobretudo, e sentia que estava mesmo mesmo a atingir o meu limite. Eu, que adoro o que faço, ia nos últimos tempos trabalhar por obrigação e com um único pensamento: "mas que raio de problemas vão hoje acontecer?". Acredito que todos passamos por estas fases de absoluta saturação e desgaste em alguns momentos da nossa vida profissional e que a única solução é meter pernas ao caminho e dar a volta por cima, mas confesso que as férias vieram mesmo, mesmo, a calhar neste período.

    E estás pronta para regressar? Pois tenho que estar!

   Não estou propriamente feliz (mas quem é que o está?) e confesso que regresso um pouco apreensiva com o que vou encontrar depois destes 12 dias de completa ausência (palminhas para mim que desliguei o telemóvel profissional quando saí no último dia de trabalho e nem email profissional consultei durante estes dias!). Vou pronta para trabalhar (e eu adoro trabalhar em Agosto, apesar de estar sozinha) mas sinto que não vou na minha carga máxima. Provavelmente o correr dos dias irá dar-me o boost final de que preciso para agarrar novamente as minhass rotinas e responsabilidades, mas muito certamente os primeiros dias serão de muito mau humor (quem não?).

   Quanto as estas férias, foram maravilhosas! Não parei por casa um só dia, bem como eu gosto. Entre uma semana em Marrocos e 3 dias em Setúbal, os restantes dias foram passados por cá a rabiar, como manda a lei e o meu espírito. Foram sobretudo dias leves, sem obrigações, sem complicações e a tentar não pensar em nada de muito sério. Foram 18 dias sem usar maquilhagem, sem calçar uns saltos, sem me preocupar em vestir-me de forma "adulta", sem usar um par de calças (até isto vai custar!)... foram dias bons. Dias muito bons!

   Acho que a idade nos faz isto: ensina-nos a valorizar ainda mais pequenas coisas e a aproveitar ao máximo cada momento da forma mais leve e ligeira possível. Toda e cada pequena coisa deve servir para nos carregar a bateria, nem que seja só um bocadinho de cada vez. É preciso que a nossa alma se saiba alimentar dessas pequenas coisas e guardá-las bem lá dentro, porque são essas pequenas coisas que, todas juntas, nos dão a força que precisamos para viver cada dia!

 

   Para quem regressa ao trabalho amanhã, força nisso, vergamos mas não quebramos! Para quem inicia as suas férias, enjoy it, live it, sem pensar no "ai que isto passa a voar" mas antes no "ai que isto é tão bom!".  

Somos mais do que o dedo que nos apontam

   Enquanto seres humanos todos nós temos muitas falhas. Não há perfeição no aparentemente mais perfeito dos seres humanos e há sempre umas quantas arestas a serem limadas em todos nós, seja em que papel for: filhos, pais, namorados, maridos, esposas, amigos, profissionais, and so on and so far...

   Enquanto seres humanos sabemos também que estamos constantemente (permanentemente?) a ser avaliados; de uma forma mais ou menos formal, mais ou menos oficial, mais ou menos discarada, mais ou menos comprometedora, estamos sempre debaixo do escrutínio dos outros. Alguns de nós vivem melhor que outros com isto, é certo, mas ninguém escapa. 

    Uma das minhas milhentas funções/obrigações enquanto responsável por um centro social e por uma equipa de colaboradores é nunca baixar a guarda da avaliação dos meus colaboradores e estar sempre lá quando é preciso apontar o dedo. Ou pelo menos é isto que esperam de mim. Mas não é isto que eu espero de mim e do meu papel naquele lugar. 

   Os meus colaboradores não são perfeitos. Ok! Tenho alguns excepcionais, magníficos, abençoados e que roçam a perfeição profissional, mas tenho outros que precisariam de crescer profissional, alguns deles crescer muito, mais do que seria esperado e desejado para alguém com aquela idade e aquela experiência profissional. Ora a questão que se impõe é "como é que eu vou dizer a esta pessoa que o que ela faz há anos não está a ser bem feito? Que há ali uma claríssima falta de competências, que aquilo não é suficiente, que eu quero mais...? A resposta é simples: não dizendo! 

   Calma! Vamos pensar: que raio de mudança positiva eu vou conseguir promover numa pessoa se lhe digo que ela é "fraca", que não trabalha como deveria? Exato! Essa mesma! A mudança de humor, de disponibilidade e, acima de tudo, de motivação e valorização pessoal. A negativa sempre foi a pior forma de conseguir qualquer mudança. Ninguém muda forçado, revoltado... a minha regra é simples: não dizer que está a fazer e a ser errado, mas sim explicar como seria fazer e ser correto. Saber calar um "não é assim que se faz" ou um "Você não sabe o que anda aqui a fazer" e deixar sair um "era preferível se fizessemos assim" pode abrir muitas janelas. Pode não ser A solução, pode até não trazer mudança efetiva nenhuma, mas promove uma abordagem positiva de uma situação menos positiva, serena os animos, não menospreza a pessoa e sobretudo não nos dá aquela máscara de "eu é que sei, eu é que mando aqui". 

   Na vossa vida, nas vossas relações, no vosso trabalho, experimentem apontar o dedo não para acusar e/ou ordenar, mas sim para indicar um caminho... um caminho possível...poderá não ser o caminho da pessoa que têm à vossa frente, mas de certeza que lhe darem a oportunidade de saber qual poderá ser o caminho alternativo e ter a alternativa de escolher ir por ele ou não, fará com que toda a gente se sinta melhor. 

 

(E isto porquê agora? Só porque estou no rescaldo das avaliações de desempenho de 2017 da minha equipa e tive de avaliar ao pormenor cada um deles e conversar individualmente com cada um deles sobre a minha avaliação e percebi que aquilo que parece um bicho-papão do "Ai a Dra. está a avaliar-me" pode transformar-se numa fantástica oportunidade de conhecermos melhor as pessoas que trabalham connosco e aprofundarmos relações. Tirando isso, foi uma excelente oportunidade de me levar à completa exaustão mental, emocioanal e psicológica.)

1 de fevereiro 2017

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A 1 de Setembro de 2015 iniciei aquele que foi até hoje o meu maior desafio profissional: o de diretora técnica de um dos nossos centros sociais, felizmente o mais pequeno, apenas com a valência da 3a idade. Os primeiros tempos não foram fáceis para mim: não aceitei bem a mudança, não encarei bem a equipa e fui cheia de receios relativamente ao meus desempenho e ao futuro daquele centro, que estava a passar por uma fase menos boas em termos de ambiente e até financeiramente. Não desisti, adaptei-me, conformei-me e a dada altura percebi que as coisas começavam a rolar e que até se poderia fazer ali um bom trabalho. Com todas as expectativas, o centro cresceu muito, ficamos com casa cheia, passamos do prejuízo a um dos mais lucrativos e eu entreguei-me de alma e coração aquilo. Foi assim que consegui mudar aquele centro, aquela equipa e aqueles idosos. Conseguimos ser equipa, desde a empregada de limpeza até à diretora técnica e isso refletiu-se nos números e nos sorrisos, nossos e dos nossos idosos. Talvez fruto deste sucesso diário, há algum tempo que se manifestava uma vontade da chefia em me dar uma "casa maior". Sim, eu sou ambiciosa, sim eu quero chegar mais longe, sim eu gosto de fazer mais e melhor, mas sinceramente uma ano e três meses não era para mim o tempo suficiente para eu mostrar tudo o que podia fazer por aquele centro. Não agora, que estávamos melhores que nunca, que a equipa estava super motivada e eu completamente absorvida por aquele trabalho, aquele grupo de idosos e familiares e aquela equipa. Criei laços e relações como nunca e nesta área em que trabalho esta é a maior ferramenta de trabalho e de sucesso. Mas já diz o ditado "ano novo, vida nova", só nunca pensei que no meu caso a vida nova chegasse tão cedo. E assim, a 1 de Fevereiro de 2017, volto a aceitar o maior desafio da minha vida profissional: ser diretora técnica de um dos nossos maiores centros sociais, desta vez com uma população que vai dos 6 meses aos 100 anos e uma equipa enorme. É um desafio gigantesco que eu estou a tentar encarar como uma voto de confiança, uma espécie de promoção e uma oportunidade de crescimento pessoal e na minha carreira. Andei não cheguei à parte da aceitação de tudo isto, até porque a mudança aconteceu depressa demais e há todo um luto que preciso de fazer de tudo aquilo que fiz até hoje e de todas as relações que criei e ficaram para trás. Amanhã começo uma nova etapa da minha vida profissional. Vou com medo. Vou. Não tanto de falhar mas mais de não me adaptar, de não me encaixar e de não sentir aquilo como meu. É sempre esse o meu receio nas mudanças: não me sentir bem comigo. Mas vou com fé, com vontade de aprender , com vontade de fazer o melhor. Acima de tudo vou de coração cheio por tudo o que consegui até hoje com o que fiz durante estes cerca de 16meses. Se há coisa que estes dois dias de despedida me deram foi a nítida certeza de dever cumprido. Quer do ponto de vista profissional quer do ponto de vista emocional. Criei afetos durante 16meses e essa foi talvez a minha maior arma. Hoje dói saber o que deixei para trás, mas saber que a minha saída tocou tanta gente é a maior prova de sucesso que eu poderia ter. E agora é confiar. Vergar mas não quebrar e ir.

1 de Setembro de 2016 - um ano depois

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Há um ano atrás iniciei uma nova fase da minha vida profissional. Fui com medo, fui. Fui ansiosa, fui. Fui até algo desiludida e desanimada. Mas fui. Iria assumir a coordenação de um dos nossos centros sociais e isso assustou-me. Se a organização e responsabilidade são o meu forte, mandar não é para mim, não precisava de experimentar para confirmar. Mas experimentei. E rapidamente percebi que para correr bem ia ter de me entregar aquilo de corpo e alma, caso contrário tinha tudo para correr mal, pois iria-me me desiludir comigo acima de tudo. Era o único caminho. Foi o melhor caminho. Em pouco tempo as minhas expectativas foram superadas. Como em tudo na vida entreguei-me às minhas funções, à minha equipa e aos meus idosos, mas acima de tudo conquistei a vontade de "já que aqui estou vou deixar a minha marca". E assim tem sido ao longo deste ano. Tive momentos complicados, tive dificuldades, tive muitas desilusões, tive períodos em que a vontade de desistir foi gigante e assustadora. Tive. Mas tive sobretudo momentos felizes, de conquistas, objectivos cumpridos, sucessos e afetos, muitos afetos. Alimentei-me deles sempre que precisei e o barco continua a navegar. Um ano a liderar uma equipa. O tempo suficiente para confirmar que detesto dar ordens e perceber que "leading by example" é a única forma de liderar que conheço. Porque dizer "vão por ali" pode até ser mais simples e menos desgastante, mas "VAMOS por ali" parece me um caminho mais enriquecedor e, no final, mais positivo. Se eu e a minha equipa ultrapassamos os momentos difíceis foi porque fomos juntas; foi porque deixei o meu porto seguro hierarquicamente revestido para me fazer ao terreno de guerra; fomos juntas, comigo a orientar mas a lutar junto delas. Nunca serei a pessoa nascida para mandar, mas um dia de cada vez vou continuar a aprender e a crescer. Entretanto VAMOS continuar a dar apenas o melhor que temos e sabemos. Por nós e por aqueles que precisam de nós, porque no final de cada dia o que conta é a certeza de que estivemos presentes na vida de alguém que precisou.

Desmistificando mitos: os bairros sociais não são nenhum bicho-papão

   Desde que fui trabalhar para esta instituição, há quase 5 anos, que o grosso do meu trabalho é realizado nos bairros sociais do Porto. Actualmente, o meu centro social fica bem no coração de um dos mais antigos e por ventura problemáticos bairros sociais da cidade. Confesso que quando comecei o meu trabalho tive alguns receios; não me era um ambiente completamente desconhecido, mas era, sem dúvida, um ambiente onde não me sentia totalmente à vontade. Lembro-me de que no meu primeiro dia de trabalho tive uma visita domiciliária para fazer, curiosamente no bairro onde hoje estou diariamente. Fui "abandonada" numa casa desconhecida, num bairro desconhecido e no momento de regressar ao centro, sozinha e a saber que tinha de passar bem pelo meio de uma das zonas problemáticas do bairro, as minhas pernas tremiam. Por coincidência, estava esquecido em casa do cliente que visitei o casaco de uma das nossas colaboradoras e eu vi ali a minha salvação: como os casacos têm bem visível a identificação da instituição, regressei ao centro com ele vestido! Sempre era uma forma de me identificar com a instituição, que é claramente conhecida e respeitada nos locais onde está.  

   Gosto de contar esta história do meu primeiro dia e perceber como as coisas mudaram e em pouquíssimo tempo! Hoje saí para algumas visitas domiciliárias nesse mesmo bairro, que desde Setembro é a minha casa, sozinha, sem casacos, sem qualquer identificação, com total à vontade e perdi a conta ao número de vezes que disse "olá dona X", "bom dia, Sr. Y", "olá", "bom dia". E percebi mais uma vez que o que é assustador e perigoso não são as pessoas ou os locais, mas sim as ideias que construimos sobre as pessoas e os locais. Os bairros sociais do Porto são locais tão agradáveis para se estar como quaiquer outros e as gentes de lá podem ser realmente agradáveis de se conhecer. E chega a um ponto em que não dá para não nos sentirmos parte daquilo. Durante uma boa parte do dia aquele lugar supostamente mau, perigoso, insustentável, é o nosso lugar e é um lugar onde nos sentimos bem. É um lugar que temos o privilégio de conhecer, cheio de pessoas e histórias que nos ensinam o que de melhor e pior há na vida e nisto sim, os bairros sociais são bons: a ensinar-nos que a vida é muito, muito mais, do que aquilo que o nosso mundinho alguma vez poderia imaginar. 

Histórias com gente dentro

   A desumanidade de alguns humanos é coisa que eu nunca vou ser capaz de compreender, por mais que me esforce e por mais que o meu emprego me ponha à prova e me mostre que nisto das relações humanas tudo é possível. A verdade é que apesar de realmente tudo ser possível, nunca estamos preparados emocionalmente para tudo.

   Apesar de enquanto psicóloga apenas eu já ter uma forte ligação com os meus velhinhos, ser coordenadora veio-me trazer toda uma nova perspectiva e responsabilidade sobre eles. E isto nem sempre é fácil de gerir, especialmente quando gostamos do que fazemos e sentimos que estar ali para eles é realmente algo que nos preenche e realiza. O difícil é saber até onde é que vai a minha responsabilidade e quais os limites do meu envolvimento. O difícil é saber dizer "a minha função termina aqui, porque eles são meus clientes e não meus familiares". O difícil é não tomá-los como meus. E o mais difícil é desligar esse botão do "profissional/pessoal" quando sabemos que quando não estamos, não há mais nada para além do abandono e da solidão. O difícil é saber que se eu e a minha equipa não fizermos um esforço diário que por vezes vai para além do tolerável aquela pessoa passa os dias numa cama gelada, humanamente falando, numa casa sem condições, sem atenção, sem cuidados, sem comer, sem afecto, sem visitas. Duro é eu saber que se eu não estiver lá para chamar o INEM ou os receber quando têm alta hospitalar, mais ninguém está. Duro é saber que os serviços sociais contam mais comigo do que com os filhos. Duro é saber que eu faço mais por eles do que um filho. E verdadeiramente duro é eu ter de repetir diariamente para mim própria "eles não são a minha família". Mas para muitos deles, eu e a minha equipa, somos tudo o que eles têm. 

   Não será isto também uma forma de terrorismo, tão grave como qualquer outra? 

Dia Internacional do Idoso

«(…) sabes, rapaz, nós estamos para aqui metidos como animais domésticos, limitados e cheios de necessidade de cuidados, é verdade, e somos de facto parecidos com miúdos, porque vamos ficando atrapalhados das ideias, muito cansados para seguir com as coisas todas, e confundimo-nos constantemente, fazendo asneiras que não se esperam de adultos, mas somos, sobretudo quando estamos sossegadamente sentados, adultos, e metemos cá dentro da cabeça uma experiência de uma vida inteira que já viu de tanta coisa. Às vezes, avançando já a parte da senilidade a que vamos sucumbindo, podias aproveitar um pouco mais a nossa amizade, porque estamos a anos-luz da tua idade, mas temos um passado que é genericamente o teu presente e o teu futuro (…)» (Valter Hugo Mãe, “A máquina de fazer espanhóis”)

Hoje, como nunca antes, vivemos mais. A esperança média de vida para cada um de nós parece não parar de crescer, com todas as implicações positivas e negativas que isso acarreta. Como vivemos mais, envelhecemos mais e durante mais tempo. O processo de envelhecimento é universal, gradual e irreversível, referindo-se a um conjunto de mudanças e transformações que ocorrem com a passagem do tempo. Começamos a envelhecer no dia em que nascemos e enquanto a vida nos sorri, desejamos poder continuar a envelhecer por muitos e muitos anos. Envelhecer é bom, desde que seja um envelhecimento feliz. Quem não gostaria de chegar aos 100 anos cheio de vitalidade, saúde e vontade de envelhecer ainda mais? Infelizmente, envelhecer e ser velho (termo que utilizo com todo o respeito e humanidade que dedico aos nossos “mais velhos”) nem sempre é uma experiência feliz.

O número de pessoas ditas idosas não para de crescer e diariamente nos questionamos e preocupamos com as consequências destes números. É preciso cuidar dos nossos velhos, dizem os entendidos, e cada vez mais parece ser uma realidade que este país não é para velhos. Questionar o muito ou pouco que se faz pelos mais idosos não é a minha função ou pretensão, mas enquanto técnica e sobretudo enquanto pessoa que respeita e admira os nossos velhos, preocupa-me, mais do que o saber cuidar, o querer olhar por eles e para eles, dignificando-os, humanizando-os, respeitando-os e dando-lhes atenção, afecto e, porque não, amor. Preocupam-me aqueles que envelhecem sozinhos, abandonados ou negligenciados, como se por estarem na última etapa das suas vidas não merecessem tudo aquilo que um ser humano merece. Uma sociedade que esquece os mais velhos não é uma sociedade da qual nos devemos orgulhar de fazer parte. Fazer do envelhecimento uma história com um final feliz está nas mãos de todos nós que convivemos diariamente com esta realidade, seja nas nossas casas, seja no nosso trabalho. Tempo (de vida) é aquilo que lhes parece escapar entre as mãos e, por isso, tempo é o que temos de lhes dar. Tempo para estarmos lá e os ouvirmos; ouvirmos as suas histórias repetidas até à exaustão, as suas experiências, as suas preocupações, os seus medos, os seus desejos, se é que ainda lhes é permitido esperar algo mais da vida, as suas queixas, ainda que sem fundamento, as suas birras, as suas cismas, as suas constantes chamadas de atenção.

«(…) afinal, estamos velhos e temos de morrer, um primeiro e outro depois e está tudo muito bem. Sorriem, umas palmadinhas nas costas, devagar que é velhinho, e depois vão-se embora para casa a esquecerem as coisas mais aborrecidas do dia. Onde ficamos nós, os velhinhos, uma gelatina de carne a amargar como para lá dos prazos.»

(Valter Hugo Mãe, “A máquina de fazer espanhóis”).

Numa época de frenesim e minutos contados, onde ficam afinal os velhinhos? Numa impessoal cama de hospital durante dias intermináveis após a alta clínica? Na solidão das suas casas? Depositados num lar que nunca será o seu verdadeiro Lar? E nós, qual o nosso papel? Já sabemos que não podemos mudar o mundo, por maior que seja a nossa vontade. Mas o que às vezes nos esquecemos é que podemos fazer realmente a diferença no pequeno mundo de alguém que já viveu tanto que julga que agora não pode pedir nada mais que a solidão de um sofá ou de uma cama onde os dias se arrastam sem significado a caminho de uma morte que parecem desejar mais do que tudo, porque afinal já perderam mesmo tudo.

Na nossa vida e no nosso trabalho com os idosos deixo-vos um novo ideal: não chega sorrir-lhes; vamos arrancar a cada um deles, todos os dias, um sorriso. Eu sei que todos nós somos capazes de o fazer. Por eles e por nós. Porque afinal, os idosos de amanhã somos nós.