Trrrim, trrrrim...
Tenho a certeza de que a vida morre com rotina e não com a morte, e que o hábito nos petrifica, um dia olhamo-nos ao espelho e estamos transformados em estátuas (...)
(...) queremos o conforto da banalidade, daquilo que conhecemos, sentarmo-nos num restaurante e pedir sempre o mesmo bitoque, olhar para a corrupção quotidiana como quem olha uma montra de um pronto-a-vestir, fazer sempre as mesmas maldades, dobrar as camisolas da mesma maneira, votar nos mesmos criminosos, saber que as meias estão na gaveta certa, ignorar a miséria e ter a certeza absoluta de que os chapéus jamais serão pousados em cima da cama.
(...) A consciência da morte é o que nos desperta dessa morte em que vivemos, que nos diz o que deveríamos ter feito, o que deixámos de fazer, a morte é um despertador que nos acorda para a inevitabilidade dos nossos erros. Trrrrim, trrrim, morreremos em breve, temos de agir, de resistir. Não desistiremos. A solução seria termos todos uma caveira na mesinha-de-cabeceira, como fazem os monges cartuxos, para nos servir de despertador e todos os dias sabermos que temos de acordar, não para viver a rotina fatal do quotidiano, mas a vida apaixonada de alguém que ainda sabe que existem nuvens, céu e beijos.
"Flores", Afonso Cruz